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Relógios de corda


O “tic tac” dos relógios, hoje denominados “analógicos” sempre fez parte do meu sono e vontade de dormir. Era constante no adormecer, no sonho, no acordar, em todas as noites de infância que lembro.
Em casa da avó havia um…e nunca percebi porque é que sempre citei a casa dos meus avós como,  “casa da avó”…nem nunca tinha pensado nisso…curioso…
Relembro neste momento, que alguém me disse recentemente, que a vida começava aos 40…mas se calhar é a segunda parte que começa…devo ter percebido mal…
Em casa da avó, havia portanto, um despertador quadrado, acho que era branco de origem, se a memória ainda lá consegue chegar, e depois, devido ao uso foi “amarelando” – e porque naquela altura não se trocava de despertador como quem troca hoje de automóvel…há mesmo relógios que custam tanto como um automóvel na altura, ou mais…muito mais – e o dito levou anos e anos no seu “tic tac”  quase suíço. Nem recordo, alguma vez ter ido ao relojoeiro habitual da baixa de Algés. Homem baixo, curvado sobre a frente, devido possivelmente à dedicação a essa arte de mexer e tratar por tu, todas as peças de relógio, mecanismos, rodas dentadas ou não, e todas as outras que o comum dos mortais desconhece. Cabelo puxado para trás, penteadinho, olhar meigo e subserviente por cima dos óculos na ponta do nariz, que reluzia como os relógios de pulso, de cabeceira, ou de pêndulo, meticulosamente afastados de qualquer astuto grão de pó…relógios de pulso foram muitas vezes o motivo da visita…mas o despertador quadrado, nunca.
Lembro-me, de entre o fechar de olhos e o dorme não dorme, de todas as noites, o único momento em que o “tic tac” deixava de se ouvir…o momento mágico de lhe dar corda, assumido pelo avô, quase sempre à mesma hora, como um ritual secular…o barulho das rodas dentadas alimentando a corda durante algumas voltas e o ultimo “tic”, sinal de tarefa cumprida, para outros “taques” de 24 horas.
De manhã, o acordar, com aquele barulho “despertante”, tinha dias…acho mesmo que o “tic tac” me embalava o sono, numa melodia de que me fartei com o tempo…a adolescência talvez tenha cortado esse saboroso e longo momento, que hoje evito…
 
Em casa da outra avó, o cenário era idêntico, e o despertador era redondo, azul e com design de estilo…desse já lembro, me fazia acordar todos os dias de escola, pela banda, de cá, e a hora da escola soltava o martelinho entre dois “tic taques”.
Nas férias, o relógio fazendo parte do agregado familiar acompanhava, a dita, para a casa de férias na charneca da Caparica, perto da praia, mas felizmente o despertador era desactivado…acho que foi durante um desses anos e numa noite de dor de dentes que comecei a detestar aquele “tic tac” bem diferente do primeiro, e depois o gosto generalizou-se…
 
O meu primeiro relógio de pulso, oferta depois do exame bem sucedido da 4ª classe, era um “Cauny”, não me lembro se se escrevia assim, mas tinha mostrador preto era à prova de água, muito “in” na época, e um “tic tac” suave, quase espacial…tal como os despertadores seus irmãos na medida do tempo também tinha números fosforescentes.
No primeiro ano do ciclo fazia questão de lavar as mãos várias vezes por dia depois de arregaçar as mangas e fazer de propósito para molhar o relógio tal era a “curte” de ver os colegas dizerem, “ai ai vais estragar o relógio”…
Nas noites mais calmas pelas redondezas e quando já todos dormiam lembro-me de adormecer a ouvir o “tic tac” desse relógio de pulso, quase como um sussurro iluminado pelos dígitos verdes. Um dia desapareceu, nunca percebi como…Só voltei a querer interpretar o tempo na altura dos primeiros digitais…com números vermelho vivo.
 
Mas esta viagem ao interior do umbigo aconteceu de forma inesperada…o tempo aqueceu e quis comprar um termómetro para saber em que momento devo encher a banheira de água fria e em caso de alerta vermelho mergulhar.Na loja escolhida para adquirir o objecto medidor, só tinham numa versão 3 em 1…muito melhor que o shampoo modernaço… relógio, medidor de humidade( que deve ter um termo técnico…mas que este mortal desconhece…coitados dos meus professores de geo…tanto esforço vão) e termómetro…três redondinhos bonitinhos em cinzento metalizado…um must..ainda por cima muito em conta. Mas o dilema avassalou-me o espírito…ou seria a alma?
Um relógio de  “tic tac” de novo??????????
Mas aceitei o desafio, sabendo que para tal bastava não lhe pôr pilha…porque ainda fui ver se seria de corda (básico…), o seu “tic tac” de um outro milénio é simplesmente saboroso e mais tranquilo que os seus homólogos de outro tempo.
E sabes? Depois de muito olhar para ele apeteceu-me recuperar tb os outros dois, guardados num sótão. Limpei-lhes a poeira do tempo que ficou por contar, arranjei uma prateleira em local nobre da sala…certo que não lhes dei corda, mas estou apensar seriamente em fazê-lo um destes dias…e talvez uma noite destas lhes devolva a vida e lhes conte o que de mais importante aconteceu nos últimos anos…afinal não se ressuscita todos os dias.
 
…“tic tac” “tic tac” “tic tac”…

2 comentários:

Anónimo disse...

O fio da memória é o que nos prende aos sons, aos cheiros, aos objectos. Existimos porque nos prendemos a esses pequenos nadas que são, afinal de contas, a nossa substância maior: as raízes! E tê-las bem à vista, nem que seja em pedaços de tempo em forma tictaqueante, faz-nos saber que o património afectivo jamais nos deixará sentir sós.
AAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHH!É claro que adorei o estilo...a alma...;-)
Continuarei leitora leal...
Um beijo sem tempo
Schuackkkkkkkkk

Anónimo disse...

Tic, tac, ring, ring, cucu, cucu, dong, dong,…

Relógios, relógios, relógios…..

Após um breve mergulho no turbilhão dos ponteiros, das cordas, das rodas, dos pêndulos, dos cucos, dos números escritos das mais diversas e imaginativas maneiras, senti-me quase sufocada e maravilhada com a voltinha ao mundo do tempo contado.

Para onde desviar o olhar, onde o tempo possa parar? Impossível, haverá sempre um relógio para nos dizer um dia começa o outro acaba, se não for um relógio haverá o sol e a sombra para nos dizer as horas e assim nunca podemos parar no tempo.

Relembrar os velhos relógios é relembrar um pouco a nossa história, no fundo não diferem muito umas das outras, à sempre parecenças, afinal já somos muitos.