Páginas

On the road...



Uma tarde quente de Fevereiro a sugerir neles o casaco no banco de trás do cabriolé e pelos óculos escuros o olhar aberto ao mundo da mini saia.
O trânsito afunilava no Marquês formando um acordeão poluente até às Amoreiras.
Morena encaracolada, de cigarro compridinho a pingar quase em prolongamento gémeo das unhas de gel, olhar distante a adivinhar-se por detrás dos óculos astronauticos um pouco acima dos lábios pintados em bordeaux acastanhado, a falar em mãos livres dentro do seu SLK preto reluzente.
Avançando quase lado a lado num bailado urbano pediu-me passagem para ganhar alguns lugares e acedi ao pedido. Uns metros mais à frente e talvez outra chamada voltou ao lado direito inicial. Voltámos a estar lado a lado e trocámos o olhar com o seu encolher de ombros em jeito moreno de desculpa por não te resultado a manobra anterior. O carro da frente tentou passar para a fila da esquerda e ela não hesitou...decidida e despachada guinou para a direita subindo o passeio não fosse o condutor desistente ficar por ali tempo inconveniente á sua pressa. Rodinhas de metade do Mercedes no passeio e ainda por cima ao Sol em situação engarrafada não são tarefa fácil, até porque o cabelo iria ficar oleoso de tanta invasão da mãozinha esquerda e o telemovel já deveria ter feito naquele espaço todas as chamadas possíveis com o propósito de coisa nenhuma... ela decide cabriolar o carrinho. Claro que todos os que já tiveram o rabinho dentro de um SLK da primeira versão sabem que a tarefa é impossivel com o pópózinho desnivelado. O trânsito tinha ficado espectador involuntário e imóvel daquela curta metragem deliciosa.
A morena bem carregava no botão mas a capota recusava obedecer.
E a cada segundo o botão era massacrado violentamente, por parte da sua unha de gel e pontinha de dedo frustrado. No que uma mulher se pode tornar frente a um tejadilho teimoso. Escuso-me a repetir o que ouvi...garantindo que a Inquisição teria sido um colégio de freiiras frente á fúria verbal da menina astronautica.. Ela abriu a porta e antes se deslocar ao capot... decidi facilitar-lhe o resto da tarde.
- Desculpe!
- Sim diga! (Disse-me em tom meio de acordo com a fúria verbal anterior)
- Experimente voltar a por as rodas fora do passeio e vai ver que resulta.
- Não percebo ( Desta vez já mais de acordo com o estilo moreno)
- Os SLK como o seu só abrem a capota se estiverem numa superficie plana.Experimente descer as rodas do passeio.
- Haaaaaaaa, e não se importa de me ajudar? ( Agora em tom sensual)
- Penso que para descer as rodas do passeio não vai precisar da minha ajuda...
Pressionou o capot e voltou para dentro do carro.
O transito avançou mais uns metros ela desceu as rodinhas para o alcatrão e continuámos a par até uma nova paragem.
O dedinho da unha de gel voltou a pressionar o botão e Salomão abriu-lhe o tejadilho como que por milagre.
Voltou a cara para o meu lado quase ao ralenti em jeito de anuncio L'Oreal com os cabelos a acompanharem e levantarem pela força centrifuga a uma velocidade estonteante de câmara lenta... esboçando o seu melhor sorriso corado e as mãos juntas em agradecimento verbal.
Eu afastei as minhas em simpatia com um encolher de ombros sorridente.
Ela reforçou o agradecimento com um beijo soprado e glamouroso.
Aproveitei a brisa e pedi-lhe licença para me meter na frente e voltar á direita.
Deu-me passagem em jeito de vénia e mãozinha a acenar.
Retribuí taambém de mãozinha no ar enquanto ela repetia o gesto no meu retrovisor.
A minha teoria de que só loiras guiavam SLK tornava-se obsoleta naquele instante.

Sussurros I


Num daqueles silêncios repentinos, como se todos os outros sentidos batessem o pé recusando-se continuar...reconheci-lhe o andar na calçada polida. A porta da entrada saudando-a baixinho e tímida … a outra num ruído repetido de abrir e fechar quando não houve correio …o primeiro lance de escada com o ultimo degrau a ranger… uma réstia perfumada de Lempicka sempre a teimar chegar-me ao nariz … o ritual a cumprir-se …os dois “taques” do corrimão orgulhoso em protegê-la dos saltos de segunda a sexta…e outro lance...o único momento em que lhe perco o rasto…mas que adivinho logo a seguir… chocalhando a mala até encontrar o molho de chaves…a porta que se abre e faz por simpatia mexer a do meu prmeiro andar quando volta a fechar.
Os passos dela, agora descalços, no andar de cima. A água a correr…a música a tocar após outra pausa invulgar…CD ou rádio?
Sorri…era o disco de que lhe falei, no meio de um bom dia cruzado de pastel de Belém na mão a caminho de casa… seria a curiosidade insuportável? Gostei de a imaginar comprar o que lhe sugeri, apesar de me ter dito que só ouvia World e Chill.
Levantou o volume…imagino-a a olhar para a capa do disco folheando o interior a caminho do banho...Confirmei…e também que não fechou a porta…estranho.
Continuei a olhar o rio naquele quase final de tarde de Março agradavelmente contagiado pelos graves que me invadiam acusticamente a sala.
Ela ainda na banheira…o telefone…que mais uma vez não atende. Já sem musica, daí a outro tanto de tempo é denunciada pela água a escorregar-se por ela até se misturar com as ondas da banheira..Os passos até ao outro lado da sala num vestir de roupão…senti-a abrir a janela para aquele primeiro gesto nesta Primavera...afastar energicamente dos cabelos longos qualquer vestígio de água …vejo gotas caírem-me na varanda ….Acendeu a fósforo um cigarro... perdeu-se no olhar o Tejo...e fez o Jamie bisar depois de se deitar no hamac de canto.
“What a Difference a Day Made” ?