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Interruptores



Faltou a luz. Apesar do século XXI ter vindo para ficar outro tanto como o anterior, o facto é que quando ela se vai nunca me avisa. Apetece-lhe e pronto. Não há previsão nem data para os seus períodos de ausência.
No escuro e durante um eterno lapso de tempo...porque sem luz não há relógio para o medir e não me apeteceu levantar e ir pedir informação ao télémóvel...fiquei num pensamento provocado.
A memória foi direitinha a um gesto temporalmente tão distante que nem sei como lá chegou tão depressa. A luz também tinha faltado e a primeira frase que relembro foi:
- Deve ter sido a lâmpada. Acende outro interruptor ( porque o acto bricoleiro de mudar uma lâmpada não era banal nessa altura – fato de macaco, escadote e caixa de ferramentas eram adereços obrigatórios nesse gesto forçosamente profissional e claro, contratado).
A provar que a culpa primeira seria sempre da casa. Acho que pôr o estado em causa, naquela altura a Empresa Pública de Gás e Electricidade ( se a memória também não se apagou entretanto), seria quase sacrilégio punido com penitência vitalícia. E então lá se tiravam as dúvidas com dois ou três cliques e fricções enferrujadas dos interruptores de cobre ou porcelana, que me davam um gozo enorme mexer invadido pelo vício do meu psicadelismo infantil. Era uma atracção fatal. Hoje eu teria sido um interruptorodependente reincidente e condenado. Talvez modelo de tese sobre o efeito dos interruptores de parede na evolução cognitiva da criança.
E os tais cliques de que me lembro assim, nas casas da família que frequentava, resumiam-se aos interruptores tão desejados, aos cinco ou seis dos rádios a válvulas, a outros tantos do televisor (na altura masculino) e ao botão de pressão das campainhas das portas de entrada. Ou seja uma vintena de botões todos com som próprio e caracteristico.

E eis que a luz voltou...e se reacenderam leds e o frigorifico sussurou e o micro ondas bipou e outros bips vários se fizeram ouvir e a box reiniciou e o LCD voltou a mostrar-me o mundo e o computador se reacendeu e o telefone avisou e a normalidade impaciente voltou ao batimento cardiaco normal e os candeeiros da rua voltaram a iluminar quem passa....
Olhei para o lado esquerdo e contei os botões sem clique de dois comandos que toco apenas com um dedo e me mudam o mundo todos os dias...92.
E se um dia a luz não voltar?

Newton Faulkner - All I Got


Um tema fantástico em som West Coast. Consegui finalmente plagiar o link. Gostooooooo ... e tu?

Fado triste


A tarde tinha entrado em temperatura descendente. O benfiquista denunciado pelo boné é também adepto de pescaria de rio e fado.
Estes traços podem completar-se com outros que vêm por acréscimo, na lógica marialvista.
A sandes de chouriço, denunciada pelo vento, a mini, foram matabicho lanchado.
E porque todo o ele que se preze não micta em qualquer lado, vi-o rondar a vedação vizinha na busca de um buraco na rede, que até lá estava escondido, entre uma arvore que cresceu por entre os buracos de arame.
Uns instantes depois, lá o vi voltar ao lado de cá da vedação. Vnha com uma das mãos, escondida atrás das costas.
Ao chegar ao pé da carrinha bateu devagarinho com a outra mão no vidro e reparei que estava uma senhora no banco da frente, escondida, talvez cúmplice da sesta. Levantou a cabeça e sem sequer abrir o vidro, num gesto frio disse que não com a cabeça, reforçou o gesto com a mão e voltou a desaparecer.
Ele ficou um instante com o ramo de flores silvestres amarelas estendido e acabou por o pendurar friamente em jeito de protesto passivo no retrovisor da carrinha.
Não resisti a dar uso ao tlm para uma foto, onde se pode ver o ramo pendurado no retrovisor do pendura.
Virou costas e trocou a ternura falhada pela cana de pesca e o prazer do último resto da mini.
O mexer da ponta da cana trouxe alguma emoção ao momento e um peixe gordo ofereceu-lhe talvez o derradeiro sorriso daquele dia. Arrumou tudo e foram-se embora. Na inversão de marcha, o ramo caíu na berma e com ele aquele “fado” florido, talvez raro e sorridente, que se perdeu na intenção do pescador benfiquista.

Lua de Março


Escrever de manhã sobre um foto nocturna é como cruzar os braços e falar de uma actividade stressante ao som de música Zen com um travo absintico e já agora com o ambiente fumado a erva...que até pode ser doce.
A foto aconteceu porque os elementos estavam todos lá e passaram-me pelos olhos numa panorâmica magalómana de 12º andar.
A Torre Vasco da Gama em tom de azul interpretando o papel secundário de um farol urbano, a Lua a confessar que o próximo dia seria de calor e a fila ordenada de luzes da segunda ponte do Tejo a separar o rio da outra margem no enquadramento luminoso e multicolor.
Não fosse a máquina da Fátima e teria perdido aquele instante. Por entre convivas e copos e conversas trocadas e doces e salgados e risos ...um clic roubado a um instante da uma noite...sinto-me ladrão, com um proveito saboroso de há muito tempo não “roubar” assim.
Curiosa é também a data ...há seis anos atrás eternizei um por do Sol a sul e tomei pela primeira vez um banho de Março com sabor quase mediterrânico a sugerir beijos de Lua.
A Primavera a cada ano mais precoce não deixa nunca de me surpreender.
As andorinhas estão quase aí e eu... quero outras noites assim.
Clic...

Janela



Uma janela, de sala de espera de consultório, virada para a rua. Um bairro modesto de calçada antiga, lojas pequenas e mercearias com fruta reluzente e cuidadosamente empilhada, prontinha para se trincar.
Cãezinhos pela trela e tertúlias de ocasião a darem o toque final a um cenário cada vez mais raro do calendário XXI, onde ainda se vêm frequentadores de praças municipais onde o tempo parece ter mais horas que nos centros comerciais.
Um homem, idade avançada, passo ligeiro, cumprimenta com um levantar de chapéu em quase vénia uma conhecida ficando os dois ali a falar alegremente a julgar pelos sorrisos. Despede-se com o mesmo gesto delicado e cavalheiresco. Uns metros mais à frente repete o gesto para outra senhora esta de mais idade. Ajuda depois uma mãe a desdobrar o carrinho de bébé. E antes de dobrar, desta vez, a esquina, até quase me fazer esborrachar o nariz no vidro para acompanhar aquela fatia da sua caminhada matinal, ainda o vi apanhar algo do chão e entregar à senhora que pendurava os jornais na porta da papelaria.

Apetece-me um dia, uma vila em que o tempo passe assim com aquela pressa vagarosa onde o vento tenha preguiça de soprar, onde o sol se demore mais a cada dia e o silêncio se retrate nas casas brancas de piso térreo com telhados de barro antigo.

Alguém abriu a janela e deixou que o som da rua me apagasse a imagem da vila branca. Olhei para o relogio digital, mesmo ao lado de um plasma enorme que prendia a atenção dos “esperantes”numa das paredes da sala e vi que afinal o tempo avançava da mesma maneira.
Uma voz suave e simpática repetiu-me o nome e segui-a para outro cenário.