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Gostei de te rever hoje depois de todo este tempo...muito.
 
Vi-te uma vez a caminho da porta maior da eternidade prometida ... chamei-te, mas fingiste não me ouvir. Não insisti...conheço-te por inteiro. Nem o grito te mudaria a rota, quando te sei num caminho sortilégicamente poeirento, em que caminhas com o braço dobrado a proteger-te os olhos da tempestade de areia que te cegava... sugando-te.
 Fiquei sempre por perto, a cada esquina, perto do teu ombro para te agarrar antes da queda evidente, protegendo-me o olhar do pó...protegendo-te.Conhecia-lhe o desencanto desde a primeira brisa mas deixei-te chegar até à última metade do teu passo antes da falésia.Agarrei-te pelo ombro antes do fogo...e "acordaste"...do teu pesadelo pensado sonho.Tens a cara cheia de pó...rugas de deserto...cresceu-te a barba, mas vejo-te um sorriso de quem acorda com vontade de um banho de água da chuva...
 
Gostei de te rever hoje... ao espelho.

"When you are with me
I'm free...I'm careless...I believe
Above all the others we'll fly"


Sabores da memória

 
                                                          Foto:  Mika

Aquela praia da Caparica a que chamavam "Bexiga" era um dos meus poisos preferidos nos 80's. "Cantantes" de pilhas grandes, sugadas pelo volume máximo que os botões permitiam. E óculos de sol espelhados e volei e betinhos e futebol de praia e punks e skimys a cortar outra onda e surfistas e...ele ali a fazer-me num ápice recordar gigas de património emocional daquele tempo. Eu ao mesmo deste tempo a procurar forma de o fotografar e o sinal a passar a verde e as buzinas a atropelarem-me a vontade. Tinha perdido a oportunidade de o ter em imagem para um post que me faria sorrir.
Até que num dia de chuva ao passar de novo por lá, sem esperança de o voltar a encontrar...ele lá estava, no mesmo sinal da Praça de Espanha a vender sonhos de trincar. Tantos anos depois...

Lembro-me dele... lenço na cabeça, daqueles aos quadrados usados para assoar e com um nó em cada ponta. O suor a mostrar-se a cada novo passo de outros tantos sem conta a cada dia de sol que tratava por tu. Os dentes brancos, de homem transmontano ou minhoto, e aquele olhar verde claro que se notava quando passava por perto.  
A caixa era de folha, quase maior que o seu tronco franzino, pintada de bege com uma janela em plástico para mostrar provocadoramente, sonhos de baunilha estaladiça cuidadosamente fechados com uma tampa piramidal e uma cabeça de roberto de olhos enormes na ponta:
- Barquilhooooooooooooooooos...
Gritava a plenos pulmões no seu andar matinal decidido. Muitos chamavam-no ao longe mas depois escondiam-se, numa brincadeira de adolescentes a quem me apetecia puxar as orelhas. Mas ele nunca desanimava. Uma vez na caminhada desde a beira de água até ao cimo da areia mais escaldante para atender um cliente, uma miudinha estendeu-lhe o dedo e voltou-se para a mãe em jeito de pedido, mas negado em sinal secreto porque a carteira estaria apenas cheia de sonhos de um dia inteiro na praia. Ele reparou... viu-se talvez menino sem poder trincar tamanho sonho ali tão próximo da ponta daquele dedo, num segundo caído na areia e deu-lhe um pacote inteiro com quatro barquilhos.
Nunca o vi molhar mais que os pés, naquela maratona diária que hoje relembro. Nem de refrescar-se num gole de água. Acho que se retemperava naquele caminhar desajeitado pelo carrego às costas, na intenção de arredondar os bolsos de uma vida feita a passos curtos, vendendo sonhos de boca.
Quando a jorna fora menos boa saldava os restantes com uma técnica de marketing futurista para a época. Punha a caixa no chão e começava a correr pela praia com o pacote na mão do braço levantado. Dizendo com voz cantada que não levava nada para casa. Aquele era para o primeiro que lhe desse uma moeda. E assim vendia quase tudo num sorriso. Sempre o vi sorrir da mesma forma, de manhã até ao quase ocaso.
Nunca duvidei que tivesse com o sol um ajuste, em que dividia as sobras do negócio em troca de protecção ultravioleta. Talvez no final do dia se encontrassem perto da Adiça, à hora da praia deserta. E sentados, com os pés na praia-mar trocassem a conversa habitual, misturando em dentadas barulhentas de boca aberta o prazer da baunilha estaladiça. Antes da noite chegar, despediam-se com um até amanhã de boca cheia... a conversa era de homens e a lua não tinha nada que os ver por ali.