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Ruas



A noite despertou-me, baixinho, a vontade, para um passeio a pé pela parte velha . O silêncio, os odores nocturnos, a luz fraca das réplicas de lampiões antigos...
A minha cidade voltou a despir-se de sol e mostrou-se como a recordar-me que a tinha quase esquecido.
Abrandei a caminhada e deixei o tempo ultrapassar o passo. Um gato preto ficou imóvel a seguir-me, com um olhar vadio e terno. A torre da câmara já não dá horas. Uma mulher estende roupa numa corda folgada salpicando-me com o cheiro a lavado modesto. A taberna fechada há muitos anos traria agora aquele odor a esquecimento graduado, bebido em copos semilavados enquanto a sueca seria a única mostra de mulher presente, tocada por mãos calejadas e unhas encarvoadas. Mas a porta estava fechada e selada ao pó no lixo do esquecimento.
A serração e a fábrica de pedra tiveram o mesmo destino.
Apeteceu-me a calçada antiga e nunca renovada... voltei a passar por ela na única passagem entre prédios que conheço, que de tão estreita, é preciso roçar paredes para atingir o outro lado.
A ida terminou frente ao Tejo no ponto mais alto e possível desta latitude.
O vento veio, os sons da ponte também. Empenhei-me no voltar devagarinho, pelo mesmo itenerário de ida, para rever tudo uma outra vez.
Uma lâmpada indecisa agradeceu-me num sorriso a visita naquele seu piscar cambaleante de fim de vida.

Do not disturb



- 2º andar!... 2º... 2º.... segundo andar.
Ao fim de alguns segundos o elevador resolveu obedecer ao meu indicador esquerdo. Cheguei a pensar naquele compasso de espera claustrofóbico, se Otis seria além de místico, também reaccionário.
Abri a porta do hall do meu piso da residencial e mesmo ali num momento surrealista, estava uma nórdica bronzeada em formato dégradé de branco a vermelho quase bife, apenas com uma tanga preta como adereço e perto da histeria, a vingar com a mão, as orelinhas, sem motivo aparente, na porta do meu quarto.
Ao ouvir-me entrar contraiu-se num gesto defensivo subtil e recuante, ao olhar-me, enquanto me dirigia para a porta agredida.
Percebi o motivo… E apontei com o indicador direito ( não fosse o seu apelido também Otis e provocar demora na reflexão) para outra porta ao fundo do corredor de onde provinha o testemunho sugestivo de “sex loud and clear”.
Pediu-me desculpa em jeito de vénia desnudada, retirando-se em recuo, sem se importar, ou por esquecimento, de ir repetir a vingança na porta certa.
Fiquei a saber que o gesto de apelidar a loucura com qualquer um dos indicadores disponíveis em círculos junto á cabecinha loira era internacional… tendo desaparecido no escuro do quarto vizinho.
O meu sono foi contrariado também pela agitação do quarto suspeito que se ouvia na porta da rua.
Algo me motivou algum orgulho na minha portugalidade.
Os direitos de autor da minha vizinha do quarto ao fundo eram Made in Portugal.
E os auges sucediam-se sempre no feminino…pelo menos os que a partir de um numero sem conta, largamente superior a sete, me começou a despertar a curiosidade matemática.
Sem contar múltiplos e a cadência estonteante testemunhada ao segundo em jeito de relato pela interveniente, com uma precisão estonteante…a noite prometia. Mas apenas por lá. Os vizinhos que se lixem com um F despreconceituado.
Farto de contar os orgasmorelatos da vizinha, e porque comecei a duvidar que o quarto fosse ocupado por mais alguém a menos que o segundo ocupante fosse mudo, decidi olhar para o relógio. Cinquenta minutos desde a minha chegada a uma cadência quase suíça.
A minha última teoria foi mesmo a de pensar que era um novíssimo modelo importado de alarme em teste anti-roubo. Mas rapidamente abandonei a ideia.
Em jeito de final de fogo de artificio o último sinal apoteótico sugeria o regresso à normalidade decibélica, mais agora deci que bélica, confirmada logo a seguir pelo ruído mais contido e discreto da água corrente no chuveirinho.
Já há uns anos que não vinha ao Algarve, provavelmente a nórdica nunca cá tinha estado…
Seria o propósito de me bater à porta ter a ver com o incomodo pelo barulho do quarto do fundo???
Assim como assim…preferi a última e prometedora letra do abcedário.

Barbearias



Lembro-me daquela barbearia de luzes amareladamente tingidas pelas lacas e elixires de cheiros sublimes e só para homens de barba rija- dizia-me de passagem quem me levava pela mão. Ficava fascinado ao passar por lá nas tardes de inverno quando as luzes de mercúrio dos candeeiros de rua, já acesas, invejavam aquela tonalidade quente. Lá dentro liam-se jornais que “moteavam” a conversa a cada dia, com um rádio de pilhas com as vozes monocórdicas e as músicas da Emissora Nacional naquele baixinho que só se ouvia nos momentos de silêncio por entre o abrir e fechar das tesouras e do bombear de spray lacado.
Na parede espelhada, sempre um calendário de pin-up em topless com uma flor ou um laçinho a dar côr e candura àquele monumento anual que os meses iam também amarelando.
Por vezes, um engraxador com perna de pau, que me deliciava o olhar pela agilidade do escovar em dueto de mãos e tirando sons chicoteados do pano, ao polir cada sapato.
Mas o meu barbeiro nunca foi ali, naquele manancial desejado de rua direita. Pela mão levavam-me a outro ali perto. Sentavam-me numa cadeira alta com uma almofada de cabedal vermelho para me tonrar crescido e confortável para os rins do Sr. Favinhas, que não tinha calendário de menina nua no espelho nem luzes amarelas. Só das flourescentes e frias que iluminavam o corte por vezes contrariado em arrepio de pente e tesoura, desobediente ao olhar de um pastor alemão de calendário.
E essa memória esqueceu-se no tempo até há poucos anos em que me tornei cliente da primeira num acaso de passar por lá.
O aprendiz tornou-se patrão e o outro empregado continua empregado. Desimporta-me qual deles está disponivel para o corte.
Mas da última vez foi a cadeira do empregado que utilizei.
As luzes tornaram-se brancas com o tempo e as obras de restauro davam ainda cheiro novo. O que restou foi apenas o espelho no mesmo sitío do anterio a ocupar toda a parede frente às cadeiras dferentes da referência primeira e a pin-up agora sem laço, flor ou mesmo a parte de baixo do biquini e fotografada em pose provocante a que hoje nenhum dos miúdos que passam na rua ligarão.
O rádio já não era de pilhas, os jornais multiplicaram-se nas cadeiras de espera. Tema do dia: futebol...selecção.
Apenas perguntei qual tinha sido o resultado...Erro crasso no mote escolhido.
O empregado que tinha começado o corte a pente 4 entusiasmado com o seu protesto aos árbitros ao treinador, ao presidente da federação e até possívelmente ao cortador de relva do estádio não parou de me bombardear com gafanhotos que me atingiram em toda a zona do couro cabeludo ou do que resta dela. O pano creme que me envolvia protegendo-me dos inofenssivos cabelinhos caídos foi incapaz de ficar com uma área menos salpicada com cada perdigoto lançado por aquela criatura fora de si.
Percebi que futebol não seria definitivamente um bom tema para conversa com empregado de quem apenas tinha um reparo anterior.
O facto de se encostar demasiado aos braços dos clientes durante cada prestação. Pedi reforço no elixir pós corte. A intensidade de alcool deveria desmicróbiar tudo.
Levantei-me e deixei por herança momentanea o lugar na cadeira do empregado, a um cliente novo, seco e acabadinho de chegar:
- Tás bom Manel? Viste o jogo?
E ainda consegui sair dali antes do Manel responder