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Barbearias



Lembro-me daquela barbearia de luzes amareladamente tingidas pelas lacas e elixires de cheiros sublimes e só para homens de barba rija- dizia-me de passagem quem me levava pela mão. Ficava fascinado ao passar por lá nas tardes de inverno quando as luzes de mercúrio dos candeeiros de rua, já acesas, invejavam aquela tonalidade quente. Lá dentro liam-se jornais que “moteavam” a conversa a cada dia, com um rádio de pilhas com as vozes monocórdicas e as músicas da Emissora Nacional naquele baixinho que só se ouvia nos momentos de silêncio por entre o abrir e fechar das tesouras e do bombear de spray lacado.
Na parede espelhada, sempre um calendário de pin-up em topless com uma flor ou um laçinho a dar côr e candura àquele monumento anual que os meses iam também amarelando.
Por vezes, um engraxador com perna de pau, que me deliciava o olhar pela agilidade do escovar em dueto de mãos e tirando sons chicoteados do pano, ao polir cada sapato.
Mas o meu barbeiro nunca foi ali, naquele manancial desejado de rua direita. Pela mão levavam-me a outro ali perto. Sentavam-me numa cadeira alta com uma almofada de cabedal vermelho para me tonrar crescido e confortável para os rins do Sr. Favinhas, que não tinha calendário de menina nua no espelho nem luzes amarelas. Só das flourescentes e frias que iluminavam o corte por vezes contrariado em arrepio de pente e tesoura, desobediente ao olhar de um pastor alemão de calendário.
E essa memória esqueceu-se no tempo até há poucos anos em que me tornei cliente da primeira num acaso de passar por lá.
O aprendiz tornou-se patrão e o outro empregado continua empregado. Desimporta-me qual deles está disponivel para o corte.
Mas da última vez foi a cadeira do empregado que utilizei.
As luzes tornaram-se brancas com o tempo e as obras de restauro davam ainda cheiro novo. O que restou foi apenas o espelho no mesmo sitío do anterio a ocupar toda a parede frente às cadeiras dferentes da referência primeira e a pin-up agora sem laço, flor ou mesmo a parte de baixo do biquini e fotografada em pose provocante a que hoje nenhum dos miúdos que passam na rua ligarão.
O rádio já não era de pilhas, os jornais multiplicaram-se nas cadeiras de espera. Tema do dia: futebol...selecção.
Apenas perguntei qual tinha sido o resultado...Erro crasso no mote escolhido.
O empregado que tinha começado o corte a pente 4 entusiasmado com o seu protesto aos árbitros ao treinador, ao presidente da federação e até possívelmente ao cortador de relva do estádio não parou de me bombardear com gafanhotos que me atingiram em toda a zona do couro cabeludo ou do que resta dela. O pano creme que me envolvia protegendo-me dos inofenssivos cabelinhos caídos foi incapaz de ficar com uma área menos salpicada com cada perdigoto lançado por aquela criatura fora de si.
Percebi que futebol não seria definitivamente um bom tema para conversa com empregado de quem apenas tinha um reparo anterior.
O facto de se encostar demasiado aos braços dos clientes durante cada prestação. Pedi reforço no elixir pós corte. A intensidade de alcool deveria desmicróbiar tudo.
Levantei-me e deixei por herança momentanea o lugar na cadeira do empregado, a um cliente novo, seco e acabadinho de chegar:
- Tás bom Manel? Viste o jogo?
E ainda consegui sair dali antes do Manel responder

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