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Desconversas de escada




Hora: 13,10 h , segunda-feira
Metereologia : Manhã de nevoeiro, 12º.
Detalhes: vários, irrelevantes


A porta da rua abre-se e alguém entra.
O chiar de uma caixa do correio a abrir
Um cão ladra.
Outra porta que se abre no 3º.

Vizinha 1 – Vi zi nha
Vizinha 2 – Diga
V1 – Importa-se de ver se tenho aí correio
V2 – Sim sim veio
A vizinha 3 abre a porta do 1º, sai e fecha a porta à chave.
V1 – Veio?
V2 – Sim veio
V1- Quem é que veio?
V2 – O carteiro
V1 – Importa-se de ver aí na caixa se tenho correio?
V2 – Sim D. Margarida, já lhe disse que veio
V3 – O carteiro D.Luisa, ela pergunta se tem correio.
V2- Estava à espera da reforma mas sempre que é para receber chega sempre atrasado.
V1 - Mas veja lá se tenho aí correio a caixa está aberta. E assim escuso de ir aí abaixo.
V2 – O que é que ela diz que não percebo?
V3 –Está a perguntar se tem correio para ela.
V2 . Ah
Vizinha 3 decide de ver ela mesmo se a vizinha do 3º tem correio na caixa.
V3- Olhe… D. Margarida tem aqui duas cartinhas sim.
V1 – Veja lá por favor se alguma é da reforma.
V3 – O que é que ela disse?
V2 – Olhe também não percebi.
V3 – O que é que disse D. Margarida?
V1 – Veja lá se está aí a minha reforma, se faz favor.
V2 – Ela disse qualquer coisa da obra, mas também não percebo.
V1 – DA REFORMA,R E F O R M A veja lá se está aí uma carta DA MINHA PENSÃO.
V3 – Eu não percebo nada do que ela diz…
V2 – Nem eu… O que é que disse vizinha?
V1 –…SE ESTÀ AÌ NA CAIXA UMA CARTA COM A MINHA PENSÂO.
V2 – Ahhhhhhhhh ela pergunta se o carteiro deixou cá cartas ou não.
V3 – Deixou duas cartinhas para si deixou, já tinha dito. Até logo D. Margarida. Ai esta escada faz tanto eco.O que vale é que ainda vamos ouvindo bem. A D. Margarida é que está pior,ooitada.

As vizinhas despedem-se e a do 3º pouco convencida com a eficácia da vizinhança desce a custo até ao R/C abre a caixa e diz para si em voz alta:

V1- O raio das velhas nem um favor sabem fazer…não estão cá cartas nenhumas valha-me Deus. Jarretas…

E sobe de novo para o terceiro sussurrando ais e sons de fazer andar os burros.

...




Nevoeiro é: D. Sebastião, cheiro de nuvens, o vento que se esconde, o querer ver e ele não deixar, é rolar com outro cuidado, é um olhar atento, e sinónimo de final de estação.
Trouxe com ele o frio. Hoje foi dia de mudança. No tempo, na vontade de mudar o tempo sem saber se o outro tempo que virá será tão denso quanto este.
Os barcos ecoam no rio apalpando com sons a calmaria do Tejo.
Nevoeiro é o silêncio de passagem para outro lado. Nevoeiro é tudo o que cabe escondido até decidir ser assim. O nevoeiro é respeitado pelos heróis de todos os mares.
Mas afinal é tão fraco e imprevisível que uma brisa teimosa lhe leva num ápice todo o encanto.
Sempre gostei dele. De o respirar, de o tocar de lhe adivinhar o rumo.
O nevoeiro engana e joga às escondidas com quem o quer perceber.
Marcou as últimas manhãs e hoje quase todo o dia.
Acho que se um dia pudesse ser como ele não queria ser mais nada. Deixar-me levar por uma brisa que me elevasse o estado, tornar a ser nuvem altiva até me transformar em gota mergulhante, penetrar a terra e voltar a ser vapor e de novo água. Matar fogos e sedes, alimentar planícies e faunas. Ser livre de poder voltar a sê-lo de novo. Regressar e fazer mais uma vez todo o caminho de volta. E outra ainda , com mais empenho, com mais vontade de ser nevoeiro. Com mais empenho na vontade.
Se o nevoeiro se for , porque todos eles se vão, que leve com ele tudo o que o quer deixar ficar. Que leve tudo sem rasto. Porque um dia sei que vai voltar e eu abrirei os braços para nele fluir.

Simulação...OK Mulher




Assim lá no iníciozinho entrou-me por um ouvido e seguiu o curso normal do ditado.
Umas vezes depois, achei que o otorrino me fazia um chamamento interior para consulta de urgência. Mas afinal o sentido auditivo estava de boa saúde e recomendava-se.
Até pensei que vinha aí mais uma marca com produtos técnologicamente super finos para aqueles dias em que até as deixamos levar o carro e lhes fazemos as vontades mais secretas como investimento para que o diálogo não se torne monocórdico, tadinho. Mas não, não era nada disso. E muito menos o último grito da medis.
Afinal elas, parece que estão mais seguras que nunca. Será que pela força das circunstâncias é mesmo necessário um seguro especifico para elas? Nunca imaginei que o número de acidentes com elas fosse assim tão motivador do novo conceito, mesmo descontando o facto de não haver nada que não se invente.
Eu sou gajo, e como gajo, tenho, apesar de dizer que não, uma réstia ( que modesto que eu sou) de machismozinho como qualquer ser “gajo” que se preze. Mas daí a não me importar que se invente um seguro para dizer-lhes que agora se podem sentir mais seguras é um pouco má onda.
O produto é excelente para as famílias de dois ou mais elementos em que o carro é tão disputado como o último “mon chérie” depois da festa acabada. Os gajos tem agora uma excelente desculpa para não emprestar mais o carro às caras metade, ou quartos, ou terços que sejam.
- Não tens o ok teleseguro mulher? Então vais a pé.
Imagino frases como esta. Como dádivas ao interesse deles, gajos.
E o MDM está onde? E as feministas fazem o quê? E as deputadas ficam caladas? E as outras que não se enquadram em nenhuma destas, cruzam os braços? E ainda uma parte das restantes que guiam infinitamente melhor que eles?E a DECO? E as organizações que pugnam pela igualdade de sexos? E a Marta, continua impávida a atender o telefone da empresa? E, e, e então não se faz nada? E se fosse mulher fazia greve.

-Alô? Marta? Olá, chamo-me Adulcindo, sou misógeno, tenho um tique nervoso quando espirro e uma casa no Meco. Há algum produto específico para mim?


PS- O que gosto mais no site, é tratarem as clientes no masculino, mesmo na simulação…um must.

Imagens


Um dia, o Tejo molhou-me o querer e decidi-me.
Lembro-me de já “armado” explorar as arcadas do Terreiro do Paço e tudo o que cabia na minha única 50mm. Os carros ainda por lá se quedavam na altura. Era por ali que tinha decidido ir.
Foi paixão por uma década. Fez-me viver, sonhar, sorrir, gostar, sentir, que era a melhor profissão do mundo.
“Matar” o momento quando se pretende vivo, contar o que outros querem esconder, falar sem pronunciar um som, gritar com a maior arma do silêncio.
Noutra dimensão da mesma área, deixar as luzes pintar de negro as sombras. Fazendo brincar os corpos em telas de cor neutra. E depois oferecê-los de novo à vida num passo de mãos e química elementar.
Com o propósito de fazer gostar, de ter vontade de, sugerir tudo o que os olhos não vêm mas que a vontade comanda.
Ou ainda, para tantos outros, naturezas mortas ou imagens para plasticamente se gastarem ao sabor de todos os dias úteis, acabando um dia numa gaveta ao lado de números obstinados que mudavam de cor a cada final de mês.
Revi tudo, num incrível contraste de uma terra devota no Gerês.
Havia uma mas menos cuidada no mesmo Terreiro do Paço. Há tantos anos atrás que perdi a noção de quantos.
Imaginei tudo o que passou naquele diafragma. No jeito modesto com que se envergonha dos cliques e outros ruídos digitais, levando-lhe para longe aqueles pedaços de alma que tão poucos entendem.

SiMi


Tinhas tranças noutro tempo. Sabia-te de cor os passos. Sentia-te chegar mesmo sem ver. Adivinhava-te o mote ao primeiro olhar. Sabia quase por cada teu respirar, que peça tinhas escolhido. Perfumavas notas, que teus dedos tocavam, num sustenido tempo que a meio tom se perdia. Trocavas com ele de olhos fechados, tantos abertos abraços que quase me fazias perder de ciúme. Não fosse ele passivo e submisso e perderia o jeito, o mesmo que me apontavas com aquele sorriso bemol. Em allegro te ouvia tocando-o, passeando-te, sentindo-o, harmonizando num estudo infinito. Com o prestíssimo da minha paciência a nunca atingir aquela última oitava. E os teus olhos sempre fechados atentos à pauta que te desfilava por dentro, desafiando-me num tempo rubato. Sabias o que me provocava, sabias o que me alteravas, sabias tudo mesmo debruçada sobre ele ainda e sempre de olhos fechados. E o tempo metrónomo galopando minutos que qualquer relógio não saberia contar.
De novo o tal sorriso agora menos visível mas que eu via, acompanhando o teu voltar ao tempo primo até te morrerem os dedos em grave. Voltavas, acompanhando-o de mão dada até ao silêncio das cordas, abrindo os olhos.
E eu esquecia mais uma vez toda a vossa eterna pausa cúmplice, que no durante me desafinava .
Ganhavas-me de novo e rendido, à forma como te despedias dele, encerrando o acto, no gesto lento de uma quase última vez.

Foi aqui que pela primeira vez te vi, com um vestido branco de laço, desconhecendo o mundo e as teclas pretas do teu primeiro palco.
Depois, também aqui, vi terminares outras escalas completas a preto e branco e contornares todo o espectro visível e seu oposto, abafadas no grave pelo aplauso da sala.
Hoje, já não há tranças, nem passos. Não te sinto chegar, nem o que vais dizer… nem tocar.

De ti, ficou ele. Calado, desafinado, baço, carunchento e esquecido a um canto.
E o tal ciúme que de novo me invade, desta vez em silêncio. Invejo-o mais uma vez.
Não consigo atingir a dimensão deste tempo. Se sonho um futuro, ou revejo um passado. Ou se tudo imagino, baralhando compassos, notas e toda a peça.
Talvez este silêncio seja apenas uma pausa que contagiou o tempo de agora. Ou só um compasso numa partitura de final glorificado?
Espero outro tanto, mas nada. Não há público, nem luzes, nem vermelhos. Nem sequer pauta ou cheiro de “conserto”.

Desconcertante o cenário… sem diapasão por perto.

S. Martinho, Setembro, 2006

Contra o tempo rolar

Outono de sombras calçado

Amarrar olhos ao mar

Amarras imaginar

Com reflexos escrever

Redondo o caminhar

Caminhos fingir

Nova rota encontrar

Ao cume subir

A muralhas chegar

Contrastes desenhar

No ocaso ficar

Rentrée


…e então acho que isto não se faz… Dizia uma loira que alguns minutos depois percebi que era a Florbela Queirós. Estavam num cenário cor de rosa que vim a depreender que era no programa diário da Fátima Lopes. A menos decotada das duas homónimas.
O tema de conversa, durante, imagino que outros 10 minutos, era a boca da Lili Caneças, paparazzada, descompostinha e despintada. Por alguns minutos achei que me ía tornar num fervoroso adepto da Pink Press…E eles a dissertarem sobre o assunto …Se o cenário fosse mais formal com umas gravatinhas e madeira tratada achava que poderia muiot bem ser uma sessão parlamentar da cuscovelhice .
E depois o tema mudou e um gajo que foi porta voz do Benfica também lá estava…e eu que não sabia que os reformados do glorioso arranjavam tachos desbotados. Ora vejamos, primeiro vermelho depois cor de rosa e a seguir o branco da senilidade ali mesmo às portinhas do céu…afinal a lei do silogismo até que ganha forma com exemplos assim.
A festa do Castelo Branco, foi o tema seguinte…animados, eles e elas dissertavam sobre o êxito da dita, para a qual alguns não tinham sido convidados, provocando aos ausentes presentes o escapar opinativo no comentário. Porque alguém disse à Maya ( não sei se é com y ou com um i… as minhas desculpas senhora D. May(i)a) que por volta das 4 da manhã houve na vizinhança descontente com o barulho de farra, quem atirasse ovos para o jardim florido do senhor com nome de cidade…então mas ela não adivinhou isso? Nem nas cartas? Nem nos astros? Nem nas pedras? Decididamente, serei sempre um leigo nas artes adivinhatórias…
Depois um moço novo que lá estava mas com cabelo rebelde e também assim a dar para o partido do outro com nome de terra interior começou a dissertar sobre se a festa tinha ou não motivo para ter cobertura mediática…ao que o ex vermelho e agora cor de rosa, defendeu com unhas e dentes. Afinal era um dos convidados mas saiu mais cedo antes dos ovos terem sido lançados. Cá pra mim isto são tradições dos ricos e o povinho é claro que nunca compreende estas modernices do jet7.
…não foi nada disso que aconteceu o que me disse o Castelo Branco foi que passou um carro e atirou os ovos lá para dentro, não foi nenhum vizinho…disse alguém no mesmo cenário cor de rosa…
A mim ninguém me tira da ideia que a SIC com todos os seus técnicos de imagem e comunicação …talvez importados das mais altas escolas do Rio ou ribeiro…descobriram uma forma colorida de fazer publicidade aos ovos, sem entrar na cota permitida por lei. ..só pode ser isso.
Acho que vou de férias outra vez…ou então atiro o comando da televisão para a capoeira da vizinha do rés-do-chão.
Hoje também estão 40 graus…deve ser por isso
Valha-me Nossa Senhora Sua Homónima


TRIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIMMMMMMMMMMMMMMM
O dia estava a ser daqueles para esquecer. E ainda era terça-feira.
- Boa tarde. Estou a falar-lhe em nome da EDP…
Pensei logo que me tinham violado de novo as facturas da caixa do correio e me iam cortar a luz.
- Posso falar com o titular do contrato EDP?
- Pode
- É o senhor?
- Sou
- Pode dizer-me o seu nome?
- Posso.
E dali para a frente foi o debitar do costume durante alguns segundos…
- A EDP está a oferecer aos seus clientes um novo produto composto por serviços de que pode usufruir gratuitamente durante dois meses...
Fixe, pensei que me iam dar Kilowatts à bórliu…Até porque não estava a ver uma oferta muito diferente…Se os operadores de télémóveis dão télémoveis, acessórios, ou minutos e as marcas de automóveis dão garantias e gasolina e equipamento e os supermecados dão vales de compras…A EDP só me poderia dar Kilowatts…até porque não me serviria de nada oferecerem-me como prova de fidelidade um poste usado…alegando que a oferta de valor inestimável seria dentro de anos parte integrante do valioso espólio arqueológico industrial de uma época, em troca de mais 10 anos como cliente … pensei logo que eles já estão mortinhos de medo da concorrência espanhola e a reciclagem de postes eléctricos está pelas horas da amargura.
- …Assim tenho o prazer de lhe propor que por menos de dez euros por mês possa usufruir em caso de hospitalização, de uma quantia por cada dia de internamento…
Não acredito. O que é que a hospitalização tem a ver com a EDP? Será que isto é indicio de que as caixas vão desatar todas a explodir como aconteceu há uns anos… ou que a base das torres de alta tensão estão precocemente a enferrujar e eles que se querem prevenir, lançam isto? Será que estou mesmo acordado? Será que apanhei um choque eléctrico quando liguei a máquina dos batidos e estou a delirar? Será que tenho luz? Será que não tenho e que o corte me desligou?
- Mas não é só…
Continuava o Sr. Papagaio orgulhoso dos seus índices de fósforo e da pujança com que me bombardeava. Quase que estive para dizer logo que sim…que comprava que aderia…até porque naquele ritmo iria precisar mesmo.
- …Posso também dizer-lhe que no caso de desemprego a assinatura deste produto lhe assegura…
Chegaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa…não me lembro se disse ou se só pensei.
Fiquei com a sensação de que um choque de 220 V teria provavelmente um efeito menos nocivo.
E não resisti a perguntar:
- Desculpe mas…Então a EDP agora também vende seguros? Pretende-se um alargamento a outras áreas de actividade? E já agora porque não também um supermercado com kilowatts avulso? Uma marca de automóveis eléctricos? Comunicações electrizantes?
Ele riu-se…
- É que a EDP quer prestar ainda um serviço mais completo aos seus clientes daí este novo produto.
Concluíu, demorando quase tanto tempo nesta frase como em todo o outro discurso decorado.
- Pois mas não estou interessado, obrigado.
- Mas posso perguntar o motivo?
- Pode…
- Então qual é o motivo?
- Já tenho um seguro eficaz.
- Mas sabe que aderindo pode usufruir durante dois meses sem nenhum custo adicional?
- Sim já me tinha dito.
- E mesmo assim não quer aderir?
- Não, muito obrigado.
- Muito bem. Em nome da EDP desejo-lhe uma boa tarde.

Será que esta oferta é conhecida por hospitalizados e desempregados?

Há noites que caem e soam de forma diferente...e Lisboa ali tão perto





DESTA MARGEM
D'ONDE O CÉU SE ABRE LARGO
EM ARCO SOBRE O RIO
A ESTA HORA
EM QUE O TEMPO HESITA E PÁRA
DEIXANDO-SE FICAR
A ESTA HORA
TÃO SINGULAR
DE MÁGICOS TORPORES
ESTENDO OS OLHOS
BEBO AOS MEUS AMORES
E DEIXO-ME LEVAR...

DEIXO-ME IR
À FLOR DAS ÁGUAS
ASSIM COMO QUEM VAI, VAI
TÃO TRANQUILO
SEM DESTINO
ENQUANTO A NOITE CAI
COMO QUEM
SEM OUTRO RUMO
OU DIRECÇÃO
SE DEIXASSE ASSIM LEVAR
P'LO CORAÇÃO

VAI DE VIAGEM
NINGUÉM SABE P'R'ONDE VAI
VAI SEM BAGAGEM
NEM DIRECÇÃO
SAI SEM DESTINO
QUANDO A NOITE CAI
SOBRE ESTA MARGEM
DO CORAÇÃO

A ESTA HORA ESTRANHA HORA
EM QUE TUDO PÁRA
SÓ MINH'ALMA TEIMA E VOA
DO MEU PEITO PARA FORA

DEIXO-A IR
NA MARÉ
DE OUTRAS FANTASIAS
JÁ SE PERDE
NA ESPUMA DE OUTROS DIAS
NOUTRO LUGAR



Desta Margem...da pena inconfundível do Pedro Malaquias e voz do Paulo Gonzo



Quis…
Saborear-lhe a alma
Consumir-lhe o odor
Provar-lhe o sorriso

Ontem…
Desatei a chuva
Fiz de conta
Brindei à noite

Hoje apeteceu-me…
Abalar
Refulgir
Divagar

Agora…
Espraiado
Absorto
Prazenteiro

O Sol deixou-se esconder
Ela, voltou a brilhar

E ela ali...

Porque hoje me apeteceu dar-lhe um pontapé. E ela rolou e rolou e atiçou o muro e rolou e desprezou o passeio e rompeu a estrada…e nada se lhe atravessou a senda ou propósito. Perdeu-se debaixo de um carro…alheio a tudo…tapado da luz…no descanso do uso.
Pelo final de tarde, com o ocaso a prever outra claridade herdeira…voltei a vê-la …junto ao passeio do outro lado de onde a fiz partir sem dó. Deixei-me passar.
E outra manhã se abeirou… e eu dela…e ela ali junto ao lancil olhando-me insultuosa.
Outra tarde…e outro ciclo deste tempo que por vezes se me parece parar como gestos que se assentam sem pedir. E ela ali.
E regresso… e parto de novo com a Lua…e volto noutro acordar do tempo. E ela ali.
Fiz por a deslembrar…no outro dia esquivei-me de por ela acabar. Mas ela sempre ali.
Com tantos que por ela passam, porque causa, ainda ali…
Perdi o conto aos dias pretéritos. Estirei-me, decidido a voltar a fazê-lo…desta vez não lhe decifrando o rasto, nem a seguir com os olhos…tapando mesmo o ensejo de qualquer som me trair o propósito. E outra Lua…
Alvoreceu…e o dia tornou-se maior…e anui-me em vê-la. E ela não deixou.
E dias se largaram…e luas se assomaram. E ela fugitiva.
Hoje o dia começou miúdo…e eu com ele. Atravessei a estrada… e vi-a de novo.
Tenho quase a certeza de que se riu para mim…eu sorri-lhe, com toda a infalibilidade com que se me ofereceu. Apesar de o seu sorriso ser escarnecedor…prometi-lhe baixinho, não mais lhe mudar o rumo.
Os buracos que o tempo molda em muros menos ilustres, são óptimos para guardar tesouros…mesmo de pedra, mesmo que sem outras histórias por contar.
E ela ali…ficou…
Até logo.

Um sonho…

Sentei-me na pedra que não era
Revi-me numa bruma que não vi
Olhei-me num reflexo sem retorno
Dei-me ao espaço que me trouxe
Trilhei caminhos intranquilos
Senti-me estulto, irresoluto
Contei ribeiros, fiz-me mar
Respirei ar que não o era
Fluí sílabas sem contar
Voei no vento a demora
Deixei-me ir e anuir
Para noutro sonho não perder
O que este me fez sonhar


…um acordar

Elas têm o ponto M em comum


Após o 25 de Abril todas as primeiras damas de presidentes eleitos por sufrágio democrático têm um ponto comum, vejamos: Helena Spínola, Estela Costa Gomes,
Manuela Eanes, Maria Barroso e Maria José Rita. Todas Marias.
Quem tem uma Maria tem tudo e ter uma Maria tornou-se condição obrigatória para
um candidato a Belém. Não basta a um candidato a chefe lusitano ter mais de 35 anos, reunir 7500 cidadãos eleitores, ter um projecto de candidatura e claro arranjar um megafone e um carrito com tecto de abrir para a campanha eleitoral…querer ser presidente tem outro requisito fundamental.
Se um dia pensares candidatar-te a presidente, antecipa-te e antes de mais casa-te com uma Maria, ou esquece um dia chegares a Belém.
Tudo se explica neste dia de tomada de posse do primeiro presidente português eleito no novo milénio democrata.
Temos um novo presidente e como manda a tradição, outra Maria em Belém.

Reflexos

Um vidro, não para uma janela daquelas que deixam passar o sol, a condensação ou os reflexos deformados de quem passa…eram assim os vidros mais idosos feitos à mão…mas um vidro apenas. Uma pessoa habitua-se a comprar tudo no mesmo sítio por comodidade consumista e deixa-se levar pelo aspecto aparentemente cuidado, limpo e de fácil acesso. Lembrei-me que havia um vidraceiro na chamada “rua direita” em tempos que se me recordam assim numa fracção de segundo transbordando em catadupa memória abaixo. Chamavam-lhe “chora a música”, acho que por ser músico e emanar um sentimento invulgar nas notas que soltava quando fazia uma das coisas que mais gostava além da arte do vidro, ser músico na banda filármonica da colectividade. Hoje sem lustre nem o brilho do século anterior.
Entrei, perguntei, mas sem resultado…só dali a três dias. Acho que as sociedades, na qual me incluo, se tornam impacientes a cada dia que passa.
Quase a optar pelo comércio do “tudo em um” a “rua direita” a chamar-me a sugerir-me que continuasse…
Outra loja de vidros, e entrei.
Um boa tarde afável como se me conhecesse. E não é que conhecia mesmo?
Depois de um troca de conversa pelo mundo possível naquela fracção de tempo, perguntou-me que tipo de vidro, que espessura e que tamanho. Não queria acreditar e não resisti a perguntar se o empenhamento era porque eu tinha jogado no clube em que ele tinha sido secretário. Assegurou-me que não…ou melhor que…talvez mas nada de importante nem digno de reparo.
Levantou o auscultador e disse a quem estava do outro lado da linha:
- Jão, faz-me aí um 28/32 de 4 com arestas. Já está pago e vão aí buscar.
Convidou-me a ir jogar com os “craques” de então, que se reuniam semanalmente para trocar passes de saudade clubista, como quem teima em impedir o tempo de ir passando.
Saí da “rua direita” e tomei o beco…
“Rua dos tanoeiros” dizia a placa municipal com o mesmo orgulho de quem não deixa ninguém perder-se por lá…apesar de ser uma rua de calçada sem trânsito nem saída.
A porta da oficina tinha sido verde noutro tempo…lá dentro um rádio fazia o serviço, emitindo a música possível que conseguia sair do meio do pó que vestia.
O aglomerado de vidros fulgentes e enormes prontos a serem cortados contrastavam com as paredes de que não decifrava a cor anterior. Ao fundo e no meio do atelier estava uma espécie de mó.
- É pra si?
Afirmei com boa tarde, observando o homem a voltar à tarefa do corte encomendado.
Manuseava o vidro como quem mexe num livro…em toques de arrepiar…pegava, media, alinhava o diamante que em movimentos precisos tratava por tu o vidro cada vez mais pequeno e tímido nos bocados que deitava com precisão para o lixo…a cerca de dois metros dali.
- Agora vais ter que sair daí.
Afastei-me, obediente, perante o seu olhar invulgar:
- Não é você.
Disse acendendo outro cigarro, depois de deitar fora o filtro, deixando-o aninhar-se ao canto da boca.
- É aquele caracol. O Xico tem lá um melro que apanhou …o gajo gosta de caracóis e como por vezes aparecem por aí alguns eu dou-lhe. Se não sai dali ainda vai ao chão.
Reparei que estava uma caracoleta num dos plásticos que envolviam a tal “mó”.
- Ainda ontem lhe dei uns quatro. Hoje já cá está mais um. Mas um merlo não é de gaiola. Pra mim não chega à Primavera
Um interruptor ligou a “mó” e na minha ignorância percebi que era uma pedra para as arestas do vidro. Ele continuava a manuseá-lo de mãos nuas mas desta vez achei que sem protecção a tarefa era quase impossível. Entornando de um jarro de esmalte a água para a pedra , encontrei outra referência num reflexo do tempo. Lembro-me de num jarro parecido ter experimentado tonalidades na infantilidade da observação.
A tarefa terminava…tirou umas folhas de jornal de uma pilha de outros fora de prazo, limpou o vidro e deu-mo…assim sem papel nem nada…como que em jeito de provocação talvez pelas minhas caretas quando o via mexer-lhe.
Perguntei-lhe se nunca se cortava. Com um sorrisinho de canto de boca mostrou-me as mãos:
- Está a vê-las? Só me cortei uma vez a sério. Uma fiada fugiu-me…mas depois nunca mais…se lhe tiver medo é pior.
De vidro “arestado” na mão senti-me orgulhoso de o ter comprado a quem sabe e perto de casa. Lembro-me de alguém me dizer que a isso se chama bairrismo…mas não me importo…

Ferragens

Naquele dia precisei de uns pacatos parafusos para uma bricolage sem história, banal, como outra qualquer…talvez até porque não tinha nada de mais interessante para fazer. Visitei a loja de ferragens decidi-me pelos tais, depois de escolher, após a sugestão do mesmo homem que há tantos anos os vende, dentro daquela montra de esquina, tratando por tu quase todos os que afagam a calçada do passeio vizinho, trocando como num ritual dois dedos de conversa diária. Quem diria que ele foi dos pioneiros do tratamento personalizado aos que como eu, lhe compravam porcas, parafusos, pregos e conversas com cheiro e sabor que o tempo foi diluindo. Talvez hoje essa atitude tenha outro significado que na altura se perdeu. Atender, ouvir, sugerir, escolher e até opinar com a sabedoria de muitas toneladas de ferro de todos os tipos que lhe passaram pelas mãos, hoje menos seguras, o que cada um precisa…a satisfação do cliente era o objectivo primeiro… quais conhecimentos de marketing estudado nos canhanhos, digo eu…com a certeza que nem teria a 4ª classe. E durante esta operação de me atender, que deve ter demorado no mínimo uns cinco minutos, sem espaços mortos nem falatório de vizinhança embrulhou os parafusos numa página de revista cor rosa…e lembrei que dantes eram páginas amarelas que apesar de não se lerem, se subtraiam proporcionais ao numero de clientes que por lá passavam, quem poderia imaginar o excelente método estatístico…perguntei quanto era:
Desta vez n tirou o lápis da orelha e adicionou em papel pardo. Dedilhou o teclado da máquina branca que vomitou uma fracção de rolo de papel…
- 65 cêntimos
Paguei, e agradecendo trouxe o pequeno embrulho em papel colorido com uma publicidade de creme feminino a embrulhar os parafusos. Cinco minutos de trabalho por 65 cêntimos… ainda o ouvi:
- Então pá? o teu Benfica vai de mal a pior.