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Primavera




Toc Toc...não respondes...tiro a chave de cobre do eterno
esconderijo que deixou de ser secreto…Entro sem fazer ranger
a madeira no chão...espreito e sigo o caminho do teu odor
perfumado. O GPS da tua fragrância não me trocou a latitude.
Encontro-te de costas com um sorriso de um sonho bom... meio
coberta pelo edredão cru, com símbolos chineses...aproximo-me...
Mexes-te… descubro-te os contornos… e que o sorriso se foi,
a tua boca abre-se ligeiramente...chego-me mais ...observo-te...
viras-te de novo... deixo a impressão digital dos meus lábios
sobre o teu ombro que se descobre por debaixo da almofada...
sinto-o mexer-se um pouco como que pedindo outro...fico a
olhar-te uns minutos ao som do candeeiro oriental escrevendo
reflexos no soalho.
Faço o caminho de volta pisando o mesmo trilho...fecho a porta...
A noite trouxe a Lua por entre as nuvens.
A Primavera chegou mais cedo... despida...nua.

As cores de ti



Loiros, rebeldes, protesto selvagem, solidários com o vento
Verde água, ver o mundo, que outra cheia molhou
Rosa, do gosto de boca, de beijos assim
O marfim, vivo de cal e sorrisos
Ébano seda, de cheiro, de curvas, de toque suave
Vermelho, de sangue a correr como se os mundos acabassem ali
Azul, do teu céu, que te solta no tempo, donde teimas voltar
Lilás, das flores do teu vaso em janela de água furtada
Amarelo, do odor de limão de velas acesas
Negro, do prazer de olhos fechados, de nos perdermos no escuro
Branco, da paz, de êxtases prolongados…e múltiplos
E de todas as tuas outras cores que se te misturam por dentro

Um dia…conto-te ao melhor pintor de Montmartre
…e deixo que te eternize. Talvez…no final da palete
…te redescubra o arco íris.


Paris, Abril 2001

Bacalhaus



O bacalhau pendurado na porta da mercearia vai acabar. È verdade…
Assim sem mais nem menos, sem avisar o povo. Era bom mas amanhã já não há.
A nova legislação vai obrigar os comerciantes e manterem o bacalhau a uma temperatura até 7º centigrados.
Ou então vamos ver o bacalhau pendurado no prego só no Inverno, e ao lado de um termómetro não vá a temperatura subir e toca a guardar o bacalhau no frigorifico.
O cliente português, maior consumidor mundial do fiel amigo - tínhamos que ser grandes nalguma coisa porra – não vai acatar a lei. Quase que ponho as mãozinhas no fogo, ou melhor nas brasas. Já estou a ver os protestos nacionais em massa, com manifestações de rua e greves gerais e de zelo. “Queremos de volta o bacalhau, senão isto está mau”, dirão em uníssono, ricos e pobres, jet setes e patrícios, tias e padrinhos, homens e mulheres, velhos e novos, desportistas e acamados, autarcas e presidentes de clubes, árbitros e jogadores, todos os académicos do bacalhau e turistas. Acho que depois do euro o bacalhau nos vai unir de novo e por inteiro, à volta do cheirinho único. Manifs de rua em tudo quanto é cidade vila e aldeia deste Portugal que sempre comeu bacalhau. Cartazes, panfletos, megafones, bacalhaus em punho, petições, mulheres e homens solidários com a causa sem tomarem banho há 3 meses, porque esta será uma de causas…o povo unido pelo bacalhau. Vigílias à porta de S. Bento que será forrada a bacalhau virtual…porque as reservas se estão a esgotar e dentro de anos acabou-se.
Não vai haver ministro a livrar-se de uma bacalhauzada na tromba dado por uma varina de avental preto e moedas a tilintar.
Se até hoje ninguém morreu por causa do bacalhau pendurado porque é que agora alguém acordou com dores de barriga e pensou que era do bacalhau ? Não poderia ter sido do vinho? Ou do doce? Ou das voltas que deu na cama com o bacalhau da secretária logo a seguir ao jantar? Tinha que ser o bacalhau o bode espiatório.
Isto vai ser grave, vos digo eu. Privar o povo de bacalhau, impedi-lo de lhe tocar, apalpar e cheirar antes de comprar não vai ter um final feliz . A menos que o objectivo seja de preservar as reservas mundiais deste pescado. Mas também não me parece. Se assim for em vez de trutas começamos a produzir bacalhau de cativeiro. Até não seria mal pensado…o pessoal lavava-se menos, poupava-se água, e as Etar fariam um acordo com os viveiros. O cheirinho a bacalhau seria borrifado no peixinho depois de seco e teríamos um genuíno bacalhau de produção nacional assim se completando o ciclo alimentar.
Ao que se sabe…porque isto de previsões tem que se lhe diga, apenas vão poder ser considerados e vendidos como tal três tipos de bacalhau, tudo o resto será por exemplo, “pescado salgado seco”…o que não vai dar jeito nenhum…imagine-se uma ementa – pescado salgado seco à Braz , pescado salgado seco com batatas a murro, pescado salgado seco com natas, punhetas de pescado salgado seco …conseguem imaginar? Eu também não.
Ahhhh e será que a SPA vai obrigar o Quim a trocar a letra do “bacalhau da Maria” por “pescado salgado seco da Maria”? A menos que o dela seja de uma casta do Mar de Barents.

Vou passar pela mercearia da Ivone , ver as moscas e sentir o cheiro do bacalhau pendurado. Hummmmm há lá coisa melhor que um cheirinho assim

Comboios e memórias



A memória tinha deixado no arquivo morto aqueles momentos…duas décadas e meia ou talvez mais, o cheiro a mofo e o pó que se assopra num suspiro banal.
A estação não tinha mudado… pensei antes de entrar que estava tudo na mesma. As boas memórias teimam em ser eternas, teimando em existir de forma eterna cá por dentro, o cheiro, a luz, o som, aquele burburinho da asáfama de todas as estações…mas a entrada era outra, o cheiro, a luz e o barulho também. A pedra de calçada tosca tornou-se lisa, como que para afagar o tropeção do tempo de por quem lá passa e permitir que a pressa se confunda na indiferença da caminhada. O quiosque de canto que tinha umas sandes de ovo mexido e chouriço foi trocado por uma máquina de comida plastificada e uma outra de bebidas…as paredes tornaram-se mais claras, uma empregada limpava o chão num carrinho eléctrico. Os ponteiros dos relógios de mostradores brancos e números negros, saltavam no tempo a cada segundo… ditavam partidas, chegadas, encontros e desencontros de hora marcada…atrasos, sorrisos, lágrimas….
A única semelhança para os relógios de hoje é apenas a unidade de tempo que não mudou…o segundo é exactamente o mesmo.
As pessoas entram e sentam-se e conversam e riem e olham o vazio e lêem e bocejam e coçam-se e fecham os olhos e… matam o tempo da viagem…
O apito já não é soprado na partida, mas o comboio ainda apitou antes de mais uma viagem… ainda entram mais dois viajantes. Um idoso de ar decidido de olhar grande e enérgico e um homem de meia idade de telefone na orelha.
As carruagens já não dão aquele solavanco que involuntariamente fazia agarrar-se quem estava de pé. O Cais do Sodré ficou para trás.
O castanho predominante do passado deu lugar a cores vivas deste tempo…as carruagens já não saltam a cada intervalo dos carris.
O idoso vai dialogando para si em voz baixa enquanto o olhar se perde pela janela – Filhos da puta a mim não me fazem a folha.
O homem de pé continua a falar ao telefone, indiferente ao cenário.
Santos…ouve-se uma voz feminina. Acho que fui o único a olhar para o ar, incrédulo e sorridente. O sistema teria ajudado, na altura dos bancos de napa, muita gente que perguntava se era ali que saía .
E sai meia dúzia e entram outros tantos. E o comboio volta a entregar-se à velocidade. Muito mais rápido hoje que noutro tempo.
Hão-de cá vir hão-de que digo-lhes como é – continua o idoso que colou desta vez o olhar a uma passageira obesa de cabelo comprido e peito pronunciado.
Já não se vêm árvores lá fora, a relva é mais verde desta vez, mas o cheiro a travagem ficou perdido no tempo, e os freios já não chiam no abrandar.
A insonorização impede que o ruído exterior se faça notar.
O homem de meia idade mudou de janela e continua ao telefone, parece que farto de falar - Sim sim…pois…não.
Alcântara…repete a voz feminina.
Ninguém sai e ninguém entra… Silêncio… O sinal de fechar portas… e retomamos a marcha.
Aiiiiii que vida esta – diz o idoso depois de um bocejo.
Um telefone anuncia com uma melodia personalizada uma chamada a entrar. Um homem atende pondo no chão uma mala de computador portátil – Sim…olá amor…não me vou despachar tão cedo…estou quase a chegar a Sintra…penso que não vou chegar antes da uma…eu também …- e terminou com uma intimidade imperceptível.
Estive curioso desde o principio por ver que cor teria a farda do picas…mas até agora ele não apareceu.
As curvas e o balançar ferroviário não se notam nos passageiros…era sempre motivo de risota ver os outros abanar a cabeça com os abanões dos carris, numa atitude negativista de protesto…o progresso trouxe optimismo aos passageiros.
Belém…
Ninguém sai, mas a porta abre-se entra um casal adolescente e uma senhora de bengala.
Só havia dois bancos individuais. A senhora senta-se num e a rapariga faz das pernas dele outro banco e começam dialogar em código secreto de olhares, vocabulário e beijos. A senhora olha de lado e não resiste a deixar escapar um abanar de cabeça horizontal…não provocado pelo comboio.
Pensas que vou na conversa mas estás muito enganado – continua o idoso no seu diálogo interior .
Alguns espaços estão personalizados a feltro numa arte popular de quem passa e deixa a assinatura.
Algés….
Algés?????????????????? Então e Pedrouços? Algés???????? – pergunto-me sem saber se também o disse em voz alta. Então mas o progresso anula estações e apeadeiros?????
Tive um choque emocional grave…Pedrouços deixou de existir?????
E o comboio abrandava a marcha até se imobilizar em Algés.
Sai muita gente no meio de despedidas, de sorrisos, sem atropelos, sem euforia, sem pressa. A hora não é de ponta. Deixo-me ficar até quase a porta se fechar a saborear aquele primeiro momento de uma viagem que fiz vezes sem conta a que nunca liguei nessa altura. Fiquei ali até ao ultimo segundo contado por ponteiros negros e tentar quebrar a barreira do tempo e tentar conseguir uma referência do cheiro das carruagens da CP feitas em alumínio pela Sorefame…a relembrar a estação de Algés sem túneis…apenas com o edifício da estação em tons de amarelo discreto e letras em pedra eternizadas à parede.
Saí …não cheirava nada a freios e ferro.
Num qualquer dialecto de leste uns homens despediam-se…o idoso olhou para o lado e deixou sair outro comentário no seu diálogo interior – Foda-se, estes gajos estão em todo o lado, não tivemos cá a guerra e agora temos que os aturar – disse descendo a rampa e perdendo-se no meio de outros.
O comboio seguiu viagem, discreto e em silêncio…
Eu fui descendo a rampa devagarinho tentando encontrar semelhanças de passado…em vão
Tudo é mais colorido, mais iluminado, mais prático, mais… tão diferente…
Um dia destes vou a Cascais saborear o “poucaterra” ao ritmo de outra marcha…
As coisas que se perdem com a pressa de chegar, matando o tempo…
Os velhos do Restelo até tinham alguma razão…talvez por isso lhes tenham banido o apeadeiro.