Páginas

reFLEXOS



As margens calam o silêncio barulhento das rochas

Os pássaros abandonam o voo

O oceano perde-se em marés

O sol mentiu... fingindo-se lua.

...e nessa quase noite... só os reflexos foram reais.

Passeio molhado

A chuva caía apressada, barulhenta, com vontade de vingança pelo bom tempo anterior. A iluminação da esquina firme e empenhada no seu papel de iluminar, mesmo quando a rua fica cheia de ninguém... ou quase.
Acordei pela violência com que a água batia na minha janela e pela fresta permeável a provocar pingos no alumínio. Fechei-a e vi-a caminhar junto à parede, indiferente ao tempo molhadamente chuvoso. Trazia o olhar no chão e os braços cruzados como a proteger-se da água que lhe invadia a roupa e todo o corpo.
Ao passar por baixo de um abrigo de prédio sentou-se no chão, encostou a cabeça à parede e abraçou os joelhos a olhar para a esquina oposta. Depois deixou cair a cabeça nos joelhos e ficou assim...
A chuva abrandou passados alguns minutos e um chá que bebi.
Voltei à janela e ouvi-a soluçar ainda na mesma posição anterior, ao mesmo tempo que batia com a ponta dos pés na calçada.
Um carro parou no semáforo. Lá dentro a música mostrava-se barulhenta e com graves a saltar por tudo o que era poro de chapa. Um dos ocupantes abriu a janela e meteu-se com ela. Ela indiferente nem se mexeu. Com insistência o ocupante chamou-a e ela olhou. Fez-lhe sinal de quem queria um cigarro. A porta abriu-se e o ocupante de boné preto, roupa sequinha, vai até perto dela com o braço esticado e na ponta dos dedos um maço de tabaco. Ela tira um cigarro e ele baixa-se para o acender.
Trocam algumas palavras e ela diz que não com a cabeça. Ele permanece perto dela e continua a falar-lhe. Ela risse, de forma audível, enquanto escorre o cabelo para o chão. O outro ocupante do carro sai também e chama o primeiro. E ambos entram no carro, que desaparece com ruído de pneus no chão molhado.
Ela encosta de novo a cabeça à parede, deita as pernas no chão e desfruta daquele cigarro até ao fim, demoradamente. No final, fazendo dos dedos fisga,lança a beata para o riacho no alcatrão. Levanta-se, espreguiça-se e abana a cabeça para a desencharcar. Olha o céu, confiante, retoma outro caminho, por vezes aos saltinhos e dedos a roçar a parede.

Caminhou à chuva, abraçou-se, chorou, fumou um cigarro cravado, a chuva conteve-se e trouxe-lhe de novo o sorriso, saltitante, rua abaixo.

17 de Setembro...de outro milénio


Entrou pelo quarto durante o toque das cinco, na sirene da fábrica.
Abriu ainda mais os olhos azuis como puxando a vontade de encontrar, no meio do caos, de roupas e adereços de uma vida de palcos, o que se tinha esquecido. Adiantou-se no ímpeto de achar a qualquer preço naquele canto da memória, o que o passado a fez recordar.
Revolveu gavetas e todos os cantos daquele aparador feito cómoda de avó, caixas de sapatos aconchegadas em pó de momentos esquecidos debaixo daquela cama barulhenta.
Subir ao mais alto que os pés podiam, naquela cadeira em que adorava perder-se em momentos sós . Mas o cimo do roupeiro tinha restos de tudo menos do que procurava.
Meia hora de busca desvairada, e encontrou-a finalmente, entre a cabeceira da cama e a parede, no meio de beatas, fotos rasgadas, preservativos ressequidos e uma caixa de goronzan, num gesto de desespero, quase a abrir a represa do descontrole, salgado a negro sombra.
Despiu-se. Apanhou o cabelo. Encheu a banheira. Acendeu uma vela vermelha de cheiro a morango. Abraçou o cinto ao braço direito. Esperou que a espuma eterna na colher abafasse aquela última tarde fria de Outubro...calando aquele último gesto, o fechar azul dos olhos, tantas vezes vivos na eterna vontade de o ser...

Caminhos...(2)


Olhou para a esquerda e direita quatro vezes. Atravessou apressada na passadeira como se o tempo lhe fosse curto na caminhada diária até ao outro lado da cidade.

O tempo aconteceu, por vezes mais apressado, de outras pachorrento e preguiçoso sem a vontade a arrancar-lhe outra folha de calendário.

E hoje voltei a vê-la. Os dias de eleições são sempre cheios de sorrisos.
A rua deixa-se quieta e introspectiva. Parece que os votantes caminham com mais leveza pela calçada...respeito cívico?...talvez nem tanto...apenas, porque sim.
Estava dentro do carro e vejo-a de mochila preta presa aos ombros e chinelas de praia, a subir aquela rua de Santos...confirmei com um olhar mais atento. Era mesmo ela.
Há meses que não a via. O seu ar despreocupado levou-a para o meio da estrada por onde caminhava, até uma buzina , a ter desviado num saltinho para o passeio.
Tive vontade de lhe perguntar porque deixou de aparecer aleatoriamente com uma frequência indisciplinada mais regular.
Já tinha saudades do sorriso que me provocava, ao vê-la quedar-se em frente aos restaurantes, ler a ementa e seguir até ao próximo como se nenhuma delas lhe agradasse. E correr assim todos os cantos gastronómicos.

Lá vai ela, com passo ligeiro, rua acima e destino secreto, até à próxima vontade em que o acaso nos voltará a cruzar de novo.

Chocolate de Outono


O roupeiro devolveu-me aquele aconchego turco quentinho com capuz preto, ainda meio tonto do seu hibernar.
Elas caíam... naquele suave cair, em despedida saudosa. E ela, imóvel sem gestos de ramos, a deixar sensualmente despir-se, para me deixar, um destes dias, o campo livre até ao fim da rua.
Ficam os aplausos quando lhe pisamos as folhas, naquele devolver ao chão o que ele lhe deu. Fico a vê-las ...cair.
O chocolate está no ponto e saborosamente bebível. Denunciado pelo odor que me chegou à janela do quarto salpicada pela primeira chuva de Outubro, que acelera o passo de quem foge à chuva com destino marcado e impaciente.
Mas qual "...outra primavera..." senhor "Alberto" (Camus)? Outono é Outono, com infinitos castanhos e folhas salpicadas de chuva a provocar o escuro das roupinhas de Inverno e sonos mais preguiçosos ao levantar.
Apetece-me chuva e cheiro de folhas caídas, com um chocolate quente.