Páginas

Reflexos

Um vidro, não para uma janela daquelas que deixam passar o sol, a condensação ou os reflexos deformados de quem passa…eram assim os vidros mais idosos feitos à mão…mas um vidro apenas. Uma pessoa habitua-se a comprar tudo no mesmo sítio por comodidade consumista e deixa-se levar pelo aspecto aparentemente cuidado, limpo e de fácil acesso. Lembrei-me que havia um vidraceiro na chamada “rua direita” em tempos que se me recordam assim numa fracção de segundo transbordando em catadupa memória abaixo. Chamavam-lhe “chora a música”, acho que por ser músico e emanar um sentimento invulgar nas notas que soltava quando fazia uma das coisas que mais gostava além da arte do vidro, ser músico na banda filármonica da colectividade. Hoje sem lustre nem o brilho do século anterior.
Entrei, perguntei, mas sem resultado…só dali a três dias. Acho que as sociedades, na qual me incluo, se tornam impacientes a cada dia que passa.
Quase a optar pelo comércio do “tudo em um” a “rua direita” a chamar-me a sugerir-me que continuasse…
Outra loja de vidros, e entrei.
Um boa tarde afável como se me conhecesse. E não é que conhecia mesmo?
Depois de um troca de conversa pelo mundo possível naquela fracção de tempo, perguntou-me que tipo de vidro, que espessura e que tamanho. Não queria acreditar e não resisti a perguntar se o empenhamento era porque eu tinha jogado no clube em que ele tinha sido secretário. Assegurou-me que não…ou melhor que…talvez mas nada de importante nem digno de reparo.
Levantou o auscultador e disse a quem estava do outro lado da linha:
- Jão, faz-me aí um 28/32 de 4 com arestas. Já está pago e vão aí buscar.
Convidou-me a ir jogar com os “craques” de então, que se reuniam semanalmente para trocar passes de saudade clubista, como quem teima em impedir o tempo de ir passando.
Saí da “rua direita” e tomei o beco…
“Rua dos tanoeiros” dizia a placa municipal com o mesmo orgulho de quem não deixa ninguém perder-se por lá…apesar de ser uma rua de calçada sem trânsito nem saída.
A porta da oficina tinha sido verde noutro tempo…lá dentro um rádio fazia o serviço, emitindo a música possível que conseguia sair do meio do pó que vestia.
O aglomerado de vidros fulgentes e enormes prontos a serem cortados contrastavam com as paredes de que não decifrava a cor anterior. Ao fundo e no meio do atelier estava uma espécie de mó.
- É pra si?
Afirmei com boa tarde, observando o homem a voltar à tarefa do corte encomendado.
Manuseava o vidro como quem mexe num livro…em toques de arrepiar…pegava, media, alinhava o diamante que em movimentos precisos tratava por tu o vidro cada vez mais pequeno e tímido nos bocados que deitava com precisão para o lixo…a cerca de dois metros dali.
- Agora vais ter que sair daí.
Afastei-me, obediente, perante o seu olhar invulgar:
- Não é você.
Disse acendendo outro cigarro, depois de deitar fora o filtro, deixando-o aninhar-se ao canto da boca.
- É aquele caracol. O Xico tem lá um melro que apanhou …o gajo gosta de caracóis e como por vezes aparecem por aí alguns eu dou-lhe. Se não sai dali ainda vai ao chão.
Reparei que estava uma caracoleta num dos plásticos que envolviam a tal “mó”.
- Ainda ontem lhe dei uns quatro. Hoje já cá está mais um. Mas um merlo não é de gaiola. Pra mim não chega à Primavera
Um interruptor ligou a “mó” e na minha ignorância percebi que era uma pedra para as arestas do vidro. Ele continuava a manuseá-lo de mãos nuas mas desta vez achei que sem protecção a tarefa era quase impossível. Entornando de um jarro de esmalte a água para a pedra , encontrei outra referência num reflexo do tempo. Lembro-me de num jarro parecido ter experimentado tonalidades na infantilidade da observação.
A tarefa terminava…tirou umas folhas de jornal de uma pilha de outros fora de prazo, limpou o vidro e deu-mo…assim sem papel nem nada…como que em jeito de provocação talvez pelas minhas caretas quando o via mexer-lhe.
Perguntei-lhe se nunca se cortava. Com um sorrisinho de canto de boca mostrou-me as mãos:
- Está a vê-las? Só me cortei uma vez a sério. Uma fiada fugiu-me…mas depois nunca mais…se lhe tiver medo é pior.
De vidro “arestado” na mão senti-me orgulhoso de o ter comprado a quem sabe e perto de casa. Lembro-me de alguém me dizer que a isso se chama bairrismo…mas não me importo…

Ferragens

Naquele dia precisei de uns pacatos parafusos para uma bricolage sem história, banal, como outra qualquer…talvez até porque não tinha nada de mais interessante para fazer. Visitei a loja de ferragens decidi-me pelos tais, depois de escolher, após a sugestão do mesmo homem que há tantos anos os vende, dentro daquela montra de esquina, tratando por tu quase todos os que afagam a calçada do passeio vizinho, trocando como num ritual dois dedos de conversa diária. Quem diria que ele foi dos pioneiros do tratamento personalizado aos que como eu, lhe compravam porcas, parafusos, pregos e conversas com cheiro e sabor que o tempo foi diluindo. Talvez hoje essa atitude tenha outro significado que na altura se perdeu. Atender, ouvir, sugerir, escolher e até opinar com a sabedoria de muitas toneladas de ferro de todos os tipos que lhe passaram pelas mãos, hoje menos seguras, o que cada um precisa…a satisfação do cliente era o objectivo primeiro… quais conhecimentos de marketing estudado nos canhanhos, digo eu…com a certeza que nem teria a 4ª classe. E durante esta operação de me atender, que deve ter demorado no mínimo uns cinco minutos, sem espaços mortos nem falatório de vizinhança embrulhou os parafusos numa página de revista cor rosa…e lembrei que dantes eram páginas amarelas que apesar de não se lerem, se subtraiam proporcionais ao numero de clientes que por lá passavam, quem poderia imaginar o excelente método estatístico…perguntei quanto era:
Desta vez n tirou o lápis da orelha e adicionou em papel pardo. Dedilhou o teclado da máquina branca que vomitou uma fracção de rolo de papel…
- 65 cêntimos
Paguei, e agradecendo trouxe o pequeno embrulho em papel colorido com uma publicidade de creme feminino a embrulhar os parafusos. Cinco minutos de trabalho por 65 cêntimos… ainda o ouvi:
- Então pá? o teu Benfica vai de mal a pior.