Páginas

Passeio molhado

A chuva caía apressada, barulhenta, com vontade de vingança pelo bom tempo anterior. A iluminação da esquina firme e empenhada no seu papel de iluminar, mesmo quando a rua fica cheia de ninguém... ou quase.
Acordei pela violência com que a água batia na minha janela e pela fresta permeável a provocar pingos no alumínio. Fechei-a e vi-a caminhar junto à parede, indiferente ao tempo molhadamente chuvoso. Trazia o olhar no chão e os braços cruzados como a proteger-se da água que lhe invadia a roupa e todo o corpo.
Ao passar por baixo de um abrigo de prédio sentou-se no chão, encostou a cabeça à parede e abraçou os joelhos a olhar para a esquina oposta. Depois deixou cair a cabeça nos joelhos e ficou assim...
A chuva abrandou passados alguns minutos e um chá que bebi.
Voltei à janela e ouvi-a soluçar ainda na mesma posição anterior, ao mesmo tempo que batia com a ponta dos pés na calçada.
Um carro parou no semáforo. Lá dentro a música mostrava-se barulhenta e com graves a saltar por tudo o que era poro de chapa. Um dos ocupantes abriu a janela e meteu-se com ela. Ela indiferente nem se mexeu. Com insistência o ocupante chamou-a e ela olhou. Fez-lhe sinal de quem queria um cigarro. A porta abriu-se e o ocupante de boné preto, roupa sequinha, vai até perto dela com o braço esticado e na ponta dos dedos um maço de tabaco. Ela tira um cigarro e ele baixa-se para o acender.
Trocam algumas palavras e ela diz que não com a cabeça. Ele permanece perto dela e continua a falar-lhe. Ela risse, de forma audível, enquanto escorre o cabelo para o chão. O outro ocupante do carro sai também e chama o primeiro. E ambos entram no carro, que desaparece com ruído de pneus no chão molhado.
Ela encosta de novo a cabeça à parede, deita as pernas no chão e desfruta daquele cigarro até ao fim, demoradamente. No final, fazendo dos dedos fisga,lança a beata para o riacho no alcatrão. Levanta-se, espreguiça-se e abana a cabeça para a desencharcar. Olha o céu, confiante, retoma outro caminho, por vezes aos saltinhos e dedos a roçar a parede.

Caminhou à chuva, abraçou-se, chorou, fumou um cigarro cravado, a chuva conteve-se e trouxe-lhe de novo o sorriso, saltitante, rua abaixo.

4 comentários:

Anónimo disse...

Solidão desamparada, tristeza visivél..
"Ela", sou eu e és tu quando perdidos no sentido das coisas..
Somos o q escrevemos e por vezes o q lemos.
Q bom é ler-t, lá fora n chove, mas cá dentro continua a cair, apressada, barulhenta e vingativa..
Beijinho e continua

Anónimo disse...

Q gafe!! Esqecia-m!
Saudaçoes cordiais :))
Bj

marinha disse...

...lindo!

marinha disse...

...sensações apetecíveis. Bonita fotografia em sintonia com um texto ainda mais belo. Bjs