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Sabores da memória

 
                                                          Foto:  Mika

Aquela praia da Caparica a que chamavam "Bexiga" era um dos meus poisos preferidos nos 80's. "Cantantes" de pilhas grandes, sugadas pelo volume máximo que os botões permitiam. E óculos de sol espelhados e volei e betinhos e futebol de praia e punks e skimys a cortar outra onda e surfistas e...ele ali a fazer-me num ápice recordar gigas de património emocional daquele tempo. Eu ao mesmo deste tempo a procurar forma de o fotografar e o sinal a passar a verde e as buzinas a atropelarem-me a vontade. Tinha perdido a oportunidade de o ter em imagem para um post que me faria sorrir.
Até que num dia de chuva ao passar de novo por lá, sem esperança de o voltar a encontrar...ele lá estava, no mesmo sinal da Praça de Espanha a vender sonhos de trincar. Tantos anos depois...

Lembro-me dele... lenço na cabeça, daqueles aos quadrados usados para assoar e com um nó em cada ponta. O suor a mostrar-se a cada novo passo de outros tantos sem conta a cada dia de sol que tratava por tu. Os dentes brancos, de homem transmontano ou minhoto, e aquele olhar verde claro que se notava quando passava por perto.  
A caixa era de folha, quase maior que o seu tronco franzino, pintada de bege com uma janela em plástico para mostrar provocadoramente, sonhos de baunilha estaladiça cuidadosamente fechados com uma tampa piramidal e uma cabeça de roberto de olhos enormes na ponta:
- Barquilhooooooooooooooooos...
Gritava a plenos pulmões no seu andar matinal decidido. Muitos chamavam-no ao longe mas depois escondiam-se, numa brincadeira de adolescentes a quem me apetecia puxar as orelhas. Mas ele nunca desanimava. Uma vez na caminhada desde a beira de água até ao cimo da areia mais escaldante para atender um cliente, uma miudinha estendeu-lhe o dedo e voltou-se para a mãe em jeito de pedido, mas negado em sinal secreto porque a carteira estaria apenas cheia de sonhos de um dia inteiro na praia. Ele reparou... viu-se talvez menino sem poder trincar tamanho sonho ali tão próximo da ponta daquele dedo, num segundo caído na areia e deu-lhe um pacote inteiro com quatro barquilhos.
Nunca o vi molhar mais que os pés, naquela maratona diária que hoje relembro. Nem de refrescar-se num gole de água. Acho que se retemperava naquele caminhar desajeitado pelo carrego às costas, na intenção de arredondar os bolsos de uma vida feita a passos curtos, vendendo sonhos de boca.
Quando a jorna fora menos boa saldava os restantes com uma técnica de marketing futurista para a época. Punha a caixa no chão e começava a correr pela praia com o pacote na mão do braço levantado. Dizendo com voz cantada que não levava nada para casa. Aquele era para o primeiro que lhe desse uma moeda. E assim vendia quase tudo num sorriso. Sempre o vi sorrir da mesma forma, de manhã até ao quase ocaso.
Nunca duvidei que tivesse com o sol um ajuste, em que dividia as sobras do negócio em troca de protecção ultravioleta. Talvez no final do dia se encontrassem perto da Adiça, à hora da praia deserta. E sentados, com os pés na praia-mar trocassem a conversa habitual, misturando em dentadas barulhentas de boca aberta o prazer da baunilha estaladiça. Antes da noite chegar, despediam-se com um até amanhã de boca cheia... a conversa era de homens e a lua não tinha nada que os ver por ali.

4 comentários:

segredos meus disse...

Obrigado Mika por me teres feito regressar a momentos tão felizes da minha infância.....Muitas vezes fui a miudinha que estendeu o dedo, e que ficava por aí mesmo.......mas, tão feliz que eu era nesse tempo com a minha mãe presente fisicamente na minha curta vida (ainda).....
Um beijo de admiração (cada vez mais)para ti!

Ana Casanova disse...

Este texto traz-me recordações da adolescência nas praias da linha, e no que me impressionava o calcorrear daqueles homens de pele tisnada pelo sol de tantos kilómetros percorridos para nos matar a fome e a sede e ganhar dessa forma, o pão.
Escreves maravilhosamente e é sempre um prazer, ler-te!
Um beijo enorme.

Helena disse...

Os barquilhos ... fiquei aqui mergulhada na minha infancia e adolescência.
Adorei conhecer o blog.
bjs
:)

Célia Mateus disse...

Tal como na Costa, também as minhas férias na Ericeira me trazem recordações boas. Gostei muito do que li Miguel e vou voltar :)