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Comboios e memórias



A memória tinha deixado no arquivo morto aqueles momentos…duas décadas e meia ou talvez mais, o cheiro a mofo e o pó que se assopra num suspiro banal.
A estação não tinha mudado… pensei antes de entrar que estava tudo na mesma. As boas memórias teimam em ser eternas, teimando em existir de forma eterna cá por dentro, o cheiro, a luz, o som, aquele burburinho da asáfama de todas as estações…mas a entrada era outra, o cheiro, a luz e o barulho também. A pedra de calçada tosca tornou-se lisa, como que para afagar o tropeção do tempo de por quem lá passa e permitir que a pressa se confunda na indiferença da caminhada. O quiosque de canto que tinha umas sandes de ovo mexido e chouriço foi trocado por uma máquina de comida plastificada e uma outra de bebidas…as paredes tornaram-se mais claras, uma empregada limpava o chão num carrinho eléctrico. Os ponteiros dos relógios de mostradores brancos e números negros, saltavam no tempo a cada segundo… ditavam partidas, chegadas, encontros e desencontros de hora marcada…atrasos, sorrisos, lágrimas….
A única semelhança para os relógios de hoje é apenas a unidade de tempo que não mudou…o segundo é exactamente o mesmo.
As pessoas entram e sentam-se e conversam e riem e olham o vazio e lêem e bocejam e coçam-se e fecham os olhos e… matam o tempo da viagem…
O apito já não é soprado na partida, mas o comboio ainda apitou antes de mais uma viagem… ainda entram mais dois viajantes. Um idoso de ar decidido de olhar grande e enérgico e um homem de meia idade de telefone na orelha.
As carruagens já não dão aquele solavanco que involuntariamente fazia agarrar-se quem estava de pé. O Cais do Sodré ficou para trás.
O castanho predominante do passado deu lugar a cores vivas deste tempo…as carruagens já não saltam a cada intervalo dos carris.
O idoso vai dialogando para si em voz baixa enquanto o olhar se perde pela janela – Filhos da puta a mim não me fazem a folha.
O homem de pé continua a falar ao telefone, indiferente ao cenário.
Santos…ouve-se uma voz feminina. Acho que fui o único a olhar para o ar, incrédulo e sorridente. O sistema teria ajudado, na altura dos bancos de napa, muita gente que perguntava se era ali que saía .
E sai meia dúzia e entram outros tantos. E o comboio volta a entregar-se à velocidade. Muito mais rápido hoje que noutro tempo.
Hão-de cá vir hão-de que digo-lhes como é – continua o idoso que colou desta vez o olhar a uma passageira obesa de cabelo comprido e peito pronunciado.
Já não se vêm árvores lá fora, a relva é mais verde desta vez, mas o cheiro a travagem ficou perdido no tempo, e os freios já não chiam no abrandar.
A insonorização impede que o ruído exterior se faça notar.
O homem de meia idade mudou de janela e continua ao telefone, parece que farto de falar - Sim sim…pois…não.
Alcântara…repete a voz feminina.
Ninguém sai e ninguém entra… Silêncio… O sinal de fechar portas… e retomamos a marcha.
Aiiiiii que vida esta – diz o idoso depois de um bocejo.
Um telefone anuncia com uma melodia personalizada uma chamada a entrar. Um homem atende pondo no chão uma mala de computador portátil – Sim…olá amor…não me vou despachar tão cedo…estou quase a chegar a Sintra…penso que não vou chegar antes da uma…eu também …- e terminou com uma intimidade imperceptível.
Estive curioso desde o principio por ver que cor teria a farda do picas…mas até agora ele não apareceu.
As curvas e o balançar ferroviário não se notam nos passageiros…era sempre motivo de risota ver os outros abanar a cabeça com os abanões dos carris, numa atitude negativista de protesto…o progresso trouxe optimismo aos passageiros.
Belém…
Ninguém sai, mas a porta abre-se entra um casal adolescente e uma senhora de bengala.
Só havia dois bancos individuais. A senhora senta-se num e a rapariga faz das pernas dele outro banco e começam dialogar em código secreto de olhares, vocabulário e beijos. A senhora olha de lado e não resiste a deixar escapar um abanar de cabeça horizontal…não provocado pelo comboio.
Pensas que vou na conversa mas estás muito enganado – continua o idoso no seu diálogo interior .
Alguns espaços estão personalizados a feltro numa arte popular de quem passa e deixa a assinatura.
Algés….
Algés?????????????????? Então e Pedrouços? Algés???????? – pergunto-me sem saber se também o disse em voz alta. Então mas o progresso anula estações e apeadeiros?????
Tive um choque emocional grave…Pedrouços deixou de existir?????
E o comboio abrandava a marcha até se imobilizar em Algés.
Sai muita gente no meio de despedidas, de sorrisos, sem atropelos, sem euforia, sem pressa. A hora não é de ponta. Deixo-me ficar até quase a porta se fechar a saborear aquele primeiro momento de uma viagem que fiz vezes sem conta a que nunca liguei nessa altura. Fiquei ali até ao ultimo segundo contado por ponteiros negros e tentar quebrar a barreira do tempo e tentar conseguir uma referência do cheiro das carruagens da CP feitas em alumínio pela Sorefame…a relembrar a estação de Algés sem túneis…apenas com o edifício da estação em tons de amarelo discreto e letras em pedra eternizadas à parede.
Saí …não cheirava nada a freios e ferro.
Num qualquer dialecto de leste uns homens despediam-se…o idoso olhou para o lado e deixou sair outro comentário no seu diálogo interior – Foda-se, estes gajos estão em todo o lado, não tivemos cá a guerra e agora temos que os aturar – disse descendo a rampa e perdendo-se no meio de outros.
O comboio seguiu viagem, discreto e em silêncio…
Eu fui descendo a rampa devagarinho tentando encontrar semelhanças de passado…em vão
Tudo é mais colorido, mais iluminado, mais prático, mais… tão diferente…
Um dia destes vou a Cascais saborear o “poucaterra” ao ritmo de outra marcha…
As coisas que se perdem com a pressa de chegar, matando o tempo…
Os velhos do Restelo até tinham alguma razão…talvez por isso lhes tenham banido o apeadeiro.

2 comentários:

Maria Arvore disse...

Revisitar os lugares da nossa memória faz-nos sentir estranhos numa terra estranha.
Mas apanhar todas as novidades, como coleccionaste na tua posta, é alegria de saber que ainda vemos em redor.

g. disse...

niño à k'anos o apeadeiro se foi... deixa ver... em 92 já lá ñ estava pr'ai em 85/86 (chavalinha q eu era) ;o) ainda apanhei o abandamento do comboio para tirar umas fotos malukas, vou procurá-las e coloco no meu blog para ti