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Diablo Rojo



Olhou para a esquerda e direita 4 vezes. Atavessou apressada na passadeira como se o tempo lhe fosse breve na caminhada diária até ao outro lado da cidade. Parou em frente do restaurante, fechado naquela hora matinal. Aproximou o olhar da ementa colada na porta num gesto de tique de leitura de cima abaixo. Retomou o passo lesto e empenhado no chegar, à próxima ementa.
De outras vezes vi-a numa paragem de autocarro.Sentada na pontinha do banco, pernas juntas, postura direita, mochila pequena,mãos, de tez morena, cruzadas sobre os joelhos e afastada do contacto com o mundo estranho daqueles com que tinha de partilhar aquele poiso comum. Um após outro que chegava e partia, indiferentes a uma pretensa passageira de paragem.. Entravam e saíam pessoas de camionetas usadas e poluentes, mas ela lá continuava até o desígnio do seu querer. Olhava um ponto fixo no meio de quem passava. Talvez secreto, talvez abandonado numa qualquer cor ou lugar do seu quimérico olhar.
Vestia sempre cores a destoar com cada estação. Vivas no inverno, escuras no verão, reservando-se o direito à desavença com o tempo. Ou apenas porque os seus olhos eram diferentes a ler ementas de restaurante e as tendências do ( seu ) tempo.
Durante o nosso dia desmedido de relógio de pulso, ela contrariava-lhe as horas e os compassos, numa arrogância indiferente e troçista.
E hoje voltei a vê-la. Tunica vermelha, ténis vermelhos, cabelo apanhado em duas partes de tranças de menina. Talvez afinal o calor não lhe fosse tão indiferente assim. Sentada no muro da igreja com os olhos presos à porta aberta, fazendo fronteira entre o sol tórrido e a sombra de confessionário, no mesmo olhar de paragem de autocarro. Parei e fiquei, sem pressa, a vê-la assim meio apartado e escondido.
Ora se voltava para o lado oposto no sentido do altar e a porta, ora à posição inicial. Repetiu-se umas 3 vezes a intervalos comedidos. Saltou do muro num pulinho alegre, tirou uma maçã vermelha da mochila, deu a pimeira dentada decidida e retomou o passo, desaparecendo na esquina.
Seremos nós, os de relógio de pulso, quem não sabe viver o tempo com a despreocupação do próximo segundo?
Apeteceu-me, mas fiquei no sortilégio estático de, ir atrás dela e pedir-lhe uma dentada daquela maçã intemporal...

2 comentários:

By myself disse...

Sempre tão bons...sempre tão frescos, os teus textos.

Consigo sempre voar para o local descrito.

Lindo, mesmo!

Um beijinho

Anónimo disse...

Bonito..gosto mesmo de te ler..parabens amigo,continua..
New Yorkina