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SiMi


Tinhas tranças noutro tempo. Sabia-te de cor os passos. Sentia-te chegar mesmo sem ver. Adivinhava-te o mote ao primeiro olhar. Sabia quase por cada teu respirar, que peça tinhas escolhido. Perfumavas notas, que teus dedos tocavam, num sustenido tempo que a meio tom se perdia. Trocavas com ele de olhos fechados, tantos abertos abraços que quase me fazias perder de ciúme. Não fosse ele passivo e submisso e perderia o jeito, o mesmo que me apontavas com aquele sorriso bemol. Em allegro te ouvia tocando-o, passeando-te, sentindo-o, harmonizando num estudo infinito. Com o prestíssimo da minha paciência a nunca atingir aquela última oitava. E os teus olhos sempre fechados atentos à pauta que te desfilava por dentro, desafiando-me num tempo rubato. Sabias o que me provocava, sabias o que me alteravas, sabias tudo mesmo debruçada sobre ele ainda e sempre de olhos fechados. E o tempo metrónomo galopando minutos que qualquer relógio não saberia contar.
De novo o tal sorriso agora menos visível mas que eu via, acompanhando o teu voltar ao tempo primo até te morrerem os dedos em grave. Voltavas, acompanhando-o de mão dada até ao silêncio das cordas, abrindo os olhos.
E eu esquecia mais uma vez toda a vossa eterna pausa cúmplice, que no durante me desafinava .
Ganhavas-me de novo e rendido, à forma como te despedias dele, encerrando o acto, no gesto lento de uma quase última vez.

Foi aqui que pela primeira vez te vi, com um vestido branco de laço, desconhecendo o mundo e as teclas pretas do teu primeiro palco.
Depois, também aqui, vi terminares outras escalas completas a preto e branco e contornares todo o espectro visível e seu oposto, abafadas no grave pelo aplauso da sala.
Hoje, já não há tranças, nem passos. Não te sinto chegar, nem o que vais dizer… nem tocar.

De ti, ficou ele. Calado, desafinado, baço, carunchento e esquecido a um canto.
E o tal ciúme que de novo me invade, desta vez em silêncio. Invejo-o mais uma vez.
Não consigo atingir a dimensão deste tempo. Se sonho um futuro, ou revejo um passado. Ou se tudo imagino, baralhando compassos, notas e toda a peça.
Talvez este silêncio seja apenas uma pausa que contagiou o tempo de agora. Ou só um compasso numa partitura de final glorificado?
Espero outro tanto, mas nada. Não há público, nem luzes, nem vermelhos. Nem sequer pauta ou cheiro de “conserto”.

Desconcertante o cenário… sem diapasão por perto.

1 comentários:

B disse...

Sob a forma de escrita,
posso aproximar-me de ti
com uma Alma inesgotável.

B